Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Torcendo na Raça

TORCENDO NA RAÇA

Até 1977 eu ia aos estádios com os amigos e não fazia parte de qualquer torcida organizada, mas tinha uma grande admiração por elas. Não tinha era coragem de aderir a qualquer grupo, temendo a reação da família e dos amigos, que achavam aquilo "coisa de marginal". Porém, a mesma família e os amigos adoravam o meu hobby, isto é, minhas andanças atrás do Flamengo e da Seleção Brasileira pelo mundo afora. Para isso tinha todo o apoio moral e, principalmente, financeiro. Contudo, eu me questionava quando via, fora do Rio de Janeiro, um grupo de torcedores organizados que foram ver a mesma partida.

Porra, qual a diferença desses caras pra mim – pensava? Eles vieram ver o jogo do Flamengo? Eu também! Vieram de ônibus, fudidos, vão para a arquibancada, mas estão aí com o mesmo objetivo. Não é porque vim de avião, estou em um hotel e vou assistir aos jogos na cadeira, que sou melhor que eles. A partir daí comecei a mandar a família e os amigos para o inferno (no bom sentido, é claro...), e comecei a me aproximar dos "marginais".

E o diabo começou a tentar. Um dia conheci o Cláudio Cruz, que estava se preparando para fundar a RAÇA RUBRO-NEGRA, o maior movimento de torcidas organizadas que eu já vi no planeta. O Cláudio procurava as melhores cabeças do Maracanã para fazer parte da torcida que, em seus planos, deveria ser a torcida líder. Para ajudar, o Flamengo entrava numa nova era, com uma Diretoria jovem, que pensava realmente no Clube, sem se importar com projetos políticos. Um grande time se formava, com Zico, Paulo César Carpegiani, Cláudio Adão etc. O clima era super favorável.

Por pressões da família, não entrei na torcida que estreou no Maracanã, em um Flamengo e Vasco. (Eu não “trabalhava”. Na realidade, tinha um “EMPREGO”, e que emprego...nem precisa ir lá...)  Sempre fui meio “alérgico à labuta” e não podia bater de frente na minha casa porque eles não me dariam mais grana para as viagens...). A RAÇA estava linda, empolgante, com os componentes todos de pé (coisa nunca vista em um estádio). Milhares de bandeiras. Uma coisa do outro mundo. Eu assisti ao jogo sentado bem perto deles, com uma dor de cotovelo por não estar ali no meio, mas fazer o quê...?

A Raça tinha a cara do seu chefe, o Cláudio. Ele era o Zico das arquibancadas. Líder nato, fluente comunicador, que sabia se impor no momento certo. Tenho uma grande admiração por esse cara, por tudo o que ele representou para as torcidas organizadas de todo o Brasil. Sim, porque qualquer coisa nova que surgia em estádios era (é) cópia do que a Raça inventou no Maracanã. Infelizmente, o Cláudio deixou a chefia da torcida no final dos anos 90, pois tenho absoluta certeza de que, se ele ainda estivesse na "ativa", a violência que impera nos estádios seria infinitamente menor.

Fico muito triste porque o Flamengo nunca fez uma homenagem ao Cláudio. Quando leio os nomes dos "jaburus" que são agraciados com títulos de "beneméritos", só porque o dirigente de plantão precisa de um favor qualquer, aí a tristeza vira raiva.

Eu resisti à tentação de entrar para a Raça até o início de 1979, quando o Cláudio conseguiu "comprar meu passe". Já não dava mais para resistir à pressão, até porque eu viajava para os jogos de avião, mas me integrava à torcida dentro dos estádios. Como prêmio pelo meu ingresso recebi o pomposo título de Relações Públicas Internacional da Torcida. A partir daquele dia, a faixa da Raça Rubro-Negra esteve presente em todos os jogos do Flamengo e da Seleção Brasileira, em todos os lugares do mundo.

Meu batismo de fogo na torcida foi num jogo entre Flamengo e Portuguesa de Desportos, de São Paulo, num domingo. A torcida ia sair da porta do Maracanã (estátua do Belini), no sábado, à meia-noite. Era a minha primeira viagem de ônibus com os caras e estava meio cabreiro. Cheguei lá por volta de 10h da noite e já tinha bastante gente que ia ver o jogo. Altas brincadeiras, negozinho “tomando todas”, uma zona. Os ônibus sairiam à meia-noite. Por volta de 1h30 da madrugada os ônibus das outras torcidas já tinham chegado e se preparavam pra ir embora para São Paulo, e nada dos nossos.

O Cláudio chamou o Alan e outro componente e pediu para eles irem até a garagem da empresa, para saber o que estava ocorrendo. Eles foram e demoraram pra voltar. Lá pelas 3h retornaram dizendo:

- Cláudio, seu Joaquim disse que não vai liberar os ônibus. Disse que estamos devendo duas faturas e se não pagarmos não tem ônibus...
-
O Cláudio ficou maluco. Caraca, mais de 300 pessoas querendo ir e que já tinham pagado a excursão. Ele me olhou. E disse:

- Neguinho, vamos lá! É tua prova de fogo. Pensei: - Me fudi. Vai sobrar pra mim. Vou ter que pagar essa porra!!!

Entramos no carro e fomos para a garagem da empresa, que ficava no Santo Cristo (Central do Brasil). A empresa era de dois portugueses irmãos: Seu Joaquim, o Gerente, e Seu Manuel, o dono.

Chegamos e o tal do Seu Joaquim, assim que viu o Cláudio, nem deixou ele falar:

- Aí Jesus, tô fudido...Claudinho, Claudinho, pela Virgem Maria. Nem falas! Nem falas! Se trouxes o dinheiro das duas últimas viagens eu libero os ônibus, se não trouxes, nem adianta... É ordem do Manuel.

- Mas Seu Joaquim...

- Ai caralho... Nem falas Claudinho! Nem falas! Que se não, tu vais me fazer chorare...
Te conheço bem... Conheço tua lábia... Paga, ou não tem ônibus...

- Mas Seu Joaquim...

- Ai Jesus! Virgem de Fátima...Já estou fudido e tu ainda me arranjas essa...? Se este cara começaire a falar, estou  fudido... Seguinte,
vai lá em cima no escritório falar direto com o Manuel... Eu não posso fazer nada. Vai... vai...

Me deu uma vontade de rir... Era a minha primeira vez e aquele problema... Além disso, o português nem deixou o Cláudio falar, “com medo de ser engolido pela lábia do cara”...

Subimos pra falar com o tal de Manuel. Mal o Cláudio abriu a porta e o português o viu, botou a mão na cara e disse...

- Ai Jesus... Só faltava essa... Acabou de fuder minha noite...

Alguém aí já viu uma mesa de português, dono de empresa de ônibus? Tinha de tudo em cima: papéis, canetas, lápis, calculadoras, vacas, cavalos, elefantes... Não dava nem pra ver a cara do cidadão do outro lado...

- Claudinho, pelo amor da Virgem Maria, o Joaquim já não ti disse que, se não
pagares, não tem ônibus??? Estais a dever duas faturas, amigo...

- Senhor Manuel, com essa viagem vamos pagar uma. É um jogo pequeno.
Quando tiver um jogo grande nós pagamos tudo.

- E tu estás a pensaire que isso aqui é a casa da sogra? Temos contas pra
pagar, sabias???

- Mas Seu Manuel, o senhor tem que compreender o amor que temos pelo
Flamengo... O senhor
já imaginou se eu não consigo levar a galera pra ver o jogo? A frustração do pessoal?

- Foda-se. Eu sou Vasco...

- Imagine o senhor se fosse com a torcida do Vasco... e blá... blá...blá...

O Cláudio levou quase meia hora falando no ouvido do Português. Com gestos tresloucado tipo político, com as mãos no alto, um  discurso de fazer corar Candidato a vereador do interior da Bahia... Verdadeira comédia pastelão... Eu já não agüentava mais, imagina o portuga..... Lá pelas tantas o português não agüentou e disse:

- Paras, Claudinho, paras... Leva os ônibus, leva tudo, mas paras de falar... Ô
Joaquim, ô Joaquim, libera os ônibus pra esse filho da puta, se não ele vai acabar comendo a minha bunda... E eu tô muito velho pra isso. Toda vez que esse veado aparecer aqui, das tudo o que ele quiser, mas não deixas ele falaire comigo.

Vomitei de tanto rir...

O jornalista Oscar Eurico, do Jornal dos Sports, definiu bem a torcida, em um artigo muito bonito. Leiam: