Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Despedida de Carlos Alberto Torres (New York)

FLAMENGO NA DESPEDIDA DE
CARLOS ALBERTO TORRES - NOVA IORQUE


Ainda em 1982 fizemos uma viagem muito interessante para ver Flamengo x Cosmos, na despedida do Carlos Alberto Torres. Eu e o Zé estávamos completamente duros, sem dinheiro para ir a Niterói. A coisa estava feia mesmo. Mas o jogo estava mexendo com a gente pela festa e porque, a esta altura, simplesmente não pensávamos mais em não ir a um jogo, fosse onde fosse.

Nos encontramos e fizemos as contas. A grana não dava nem para as entradas das passagens aéreas. O Zé ainda pagava a viagem a Tóquio e já tinha vendido até o carro. Nossa idéia era comprar a passagem financiada, trazer muamba para vender e pagar as dívidas. O problema era a recessão que rolava no Brasil, com o Delfim Neto (Ministro da Fazenda) fazendo com o povo aquilo que ele não faz com a mulher dele....

Não tínhamos grana mesmo. Se pintasse algum era para a entrada das passagens. Dinheiro para hotel, nem pensar. E comida...Bem, comida era supérfluo...

Quinze dias antes da viagem andávamos como Zumbis por aí, imaginando como ganhar dinheiro para a viagem. Até assaltar um banco eu topava; só me faltava o "know-how". Se fôssemos "maleáveis", poderíamos nos encostar na delegação do Flamengo, que fatalmente pintaria alguma coisa...Afinal, tínhamos moral por lá. Acontece que, esse negócio de pedir dinheiro a dirigente, era coisa de profissional de torcida, o que nunca fomos. Tinha dirigente na Gávea que não engolia muito a gente, exatamente porque não aceitávamos favores, a não ser um ou outro ingresso, que saía de graça para o Flamengo.

O Zé Carlos já tinha feito de tudo para arranjar dinheiro, até pedir emprestado para a minha querida avó Helena (que é a avó dele de verdade), coisa que ele não gostava de fazer:

- Tá feia a coisa Moraes - ele me disse -, bati de frente lá em casa. Nem ameaçando greve de fome a grana apareceu.

Para todo lado que eu olhava eu só via gente reclamando da recessão, me chamando de maluco, irresponsável...Já estava ficando de saco cheio. Afinal, tudo o que eu queria era somente passar três dias em Nova Iorque, pra ver o Flamengo jogar...

Certo dia liguei para o Zé e tive que ouvir as mesmas coisas da avó dele:

- Olha aqui Moraes, vocês têm que acabar com essas viagens malucas. O Zé achou que me comovia com greve de fome, mas, por mim, pode até definhar, que eu não vou bancar essa irresponsabilidade!

Fiquei grilado com o papo e desliguei. Sem falar com ele. Já estava ficando maluco. Aos poucos a gente ia juntando uns cem dólares aqui, cinqüenta ali, vinte acolá...E até daria para tentar alguma coisa, se o dólar paralelo se mantivesse tão alto em relação ao oficial (quase o dobro). Mas aí recebemos o tiro de misericórdia, pelas mãos do nosso Delfim. O gordo baixou um pacotaço econômico que valorizou o cruzeiro, nossa moeda de “plantão”. Houve um quase emparelhamento do dólar oficial com o paralelo, e as passagens passaram a custar trinta por cento a mais também. Era o fim.

Jogamos a toalha; não dava mesmo. Isso eu dizia da boca para fora. Intimamente, mantinha uma pequena esperança. Afinal, São Judas Tadeu nunca pisou na bola e, com certeza, não ia me deixar na mão agora. Não deu outra. No domingo seguinte ganhei na loto, no bolão de colegas da Embrafilme. Me lembro como se fosse hoje. Quando cheguei na segunda-feira, a minha querida amiga e secretária, Palmira Mancio, estava sorrindo e perguntou:

- Neguinho, você quer mesmo ir a esse jogo?

- Claro que quero, você tem alguma dúvida?

- Pois eu vou te emprestar a grana.

Ri muito e retruquei:

- Você?! Só se for rodando bolsinha na Praça Mauá. Tu tá mais dura do que eu...

Aí ela começou a rir e me contou o que tinha acontecido. Caramba, aquilo foi um milagre! Foi o momento em que mais acreditei em Deus e São Judas Tadeu. Na mesma hora liguei para o Zé e falei:

- Zé, consegui a grana. Nós vamos no domingo, junto com a delegação do Flamengo.

- Que banco tu roubou? - perguntou.

Contei para ele a história da loto e ele, ateu convicto, me xingou via Embratel:

- Milagre porra nenhuma, tu é o crioulo mais cagão desse mundo. Isso se essa história é verdade... Pra mim, você roubou alguém, mas nem quero saber, vamos nessa!

Imediatamente compramos as passagens e mandamos fazer um troféu de acrílico lindão para o "Capita". Mantivemos o plano original, ou seja, iríamos comprar umas “coisinhas” para vender por aqui.

O dinheiro estava garantido, mas a ida não ia ser das mais fáceis. O jogo em Nova Jersey seria na terça-feira e o Flamengo jogava antes, no domingo, contra o Volta Redonda, pelo Campeonato Carioca. A delegação ia sair direto do estádio para o aeroporto. Nós também, só que com menos conforto. Embarcamos no ônibus da Raça, com malas e bagagens, um pouco apreensivos, já que normalmente essas excursões sempre atrasavam na volta. Assistimos ao jogo e voltamos feito loucos para o Rio. O ônibus foi pontual dessa vez e nos deixou na porta do Maracanã. Lá, o pai do Zé estava nos esperando de carro para nos levar ao Galeão. Nossa intenção era alugar um quarto no hotel do Aeroporto para tomar um banho e trocar de roupa. O diabo é que não havia água no vestiário do estádio, em Volta Redonda, e o Flamengo teve a mesma idéia. Não sobrou nem um quarto no hotel para nós.

Eu e o Zé Carlos estávamos sujos, fedendo e completamente estressados. Olhei para o Zé e falei:
- Zé, fudeu. Nós vamos viajar assim mesmo, fedendo legal.

E ele, me olhando com cara de nojo, respondeu:

- Ah, não, de jeito nenhum! Fedendo assim a gente é preso lá em Nova Iorque, assim que chegar. Eu vou apelar. Vamos pedir ao Zico ou ao Júnior para tomar banho no quarto deles.

Foi a minha vez de falar:

- De jeito nenhum, digo eu! Os dirigentes vão olhar com cara de babaca. Vou sujo!

E mais uma discussão começava. E o tempo passando e se aproximando a hora do vôo. Foi quando, de repente, surgiu um senhor elegante que colocou a mão no meu ombro e perguntou:

- Vocês vão para Nova Iorque, né? Vocês não perdem uma, hein?

Eu nunca tinha visto o cidadão na minha vida, mas, pela aparência, vi que ele não era pouca merda. Respondi:

- Vamos sim, sujos, mas vamos. É que nós viemos de Volta Redonda e não tem vaga no hotel para tomarmos um banho.

- Vocês querem tomar banho? Isso não é problema. Venham comigo.

E nós três começamos a entrar por setores do aeroporto com placas que diziam "Pessoal autorizado". Chegamos a um setor reservado, que tinha um banheiro com chuveiro. Nosso amigo anônimo falou:

- Banho vocês podem tomar; só não tem toalha.

Eu ri:

- Sem problema, irmão - e tomei o maior banho da minha vida, me enxugando com papel higiênico e uma camiseta velha. Saímos de lá prontinhos para viajar.

Dessa experiência fica a sugestão para os administradores do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro: BOTA UM CHUVEIRO PAGO, PORRA!!!

Nosso amigo nos esperava do lado de fora. Começamos a bater papo, esperando a hora de embarcar, e então nos contou que conhecia a gente do Maracanã, porque o filho era fanático pela Raça, e o obrigava a ficar com ele, assistindo aos jogos na torcida, em pé. Além disso, devido às nossas constantes viagens, já éramos manjados no aeroporto. Ele era um “grandão” e ficamos amigos. No Governo passado, ocupou um cargo político de destaque. Só não digo seu nome para evitar eventuais problemas.

Antes do embarque, o Zé Carlos reiterou ao seu pai a recomendação de conseguir um "esquema" para nossas "muambas". Ele disse para ficarmos tranqüilos.

Limpos e confiantes no "esquema", embarcamos. Em nosso vôo estava o Alexandre Torres, filho do Carlos Alberto, que ia também oferecer uma homenagem ao pai. Em Nova Iorque ele nos deu uma carona na limosine do Cosmos, que foi esperá-lo. Já deu para economizar uns quarenta dólares. Ficamos em Nova Iorque, quietos, sem gastar muitas energias, para não gastar muito com comida. No dia do jogo seguimos para Nova Jersey num ônibus alugado pela imprensa. A delegação do Flamengo era comandada pelo George Helal, que conseguiu duas credenciais para nós. Isso facilitou bastante, pois pudemos ficar no gramado do jogo, onde colocamos a faixa da Raça e entregamos, em nome das torcidas organizadas, um lindo troféu “ao Capita”.

Quando entramos em campo, houve um erro e um atraso na programação da festa, e acabamos nós dois, no meio do Giant Stadium, perfilados junto com os vinte e dois jogadores e os árbitros, ouvindo os hinos. Foi emocionante ouvir o Hino Nacional e ver nossa imagem no telão do estádio. O Zé, se achando muito importante, pensou que tivesse virado estrela. Quando íamos saindo a torcida aplaudia muito e ele já ia agradecer quando o cutuquei e falei baixinho:

- Não faz papel de idiota não. Olha quem está atrás de você.

Quando o Zé Carlos virou de costas, viu o porquê de todos os aplausos. Ninguém menos do que Pelé acabara de entrar em campo, para dar o pontapé inicial da partida.

O jogo foi o típico amistoso. O Carpegiani jogou meio tempo e deu uma aula de como se deve jogar no meio campo de qualquer time. Outro que deu aula foi um tal de Franz Beckenbauer. Só tinha cobra... Metemos 3 a 0, relaxamos e eles empataram. Final: 3x3.

 

No dia seguinte fomos às compras. Compramos cinco aparelhos de som – os mini-systems estavam começando a aparecer –, cinco vídeos e outros troços. Nossa bagagem era indecente. Chegamos, e tinha nego no Galeão dando risada ao nos ver. Estávamos tranqüilos, pois, afinal, o pai do Zé tinha jurado que ia armar o esquema. Tanto que preferimos não nos misturar com a delegação. Mas o tempo ia passando, todo mundo indo embora, e nós lá, fingindo que queríamos ver alguma coisa no "free-shop". De repente, nosso amigo misterioso da ida aparece e, rindo, comenta:

- Vocês estão ficando velhos. Era para ter passado junto com a delegação. O que que vocês têm aí?

Explicamos a situação e ele fez um sinal para a gente passar. Nesse exato instante chega o pai do Zé, esbaforido. Passamos direto, aliviados, agora com "esquema" sobrando. O engraçado é que teve um diretor do Flamengo que, perdendo o bonde da delegação, estava tão perdido quanto nós (e com mais "muamba"). Quando ele viu que a gente ia sair, cumprimentou o pai do Zé na maior cara de pau, chamou-o de "meu querido", e passou junto conosco. Cartola não é mole não.