Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Copa de 82 - Espanha

COPA DO MUNDO DE 82 - ESPANHA


A Copa de 82, na Espanha, foi a melhor que já fiz, apesar da frustração de ver a Seleção eliminada na segunda fase.  A Copa das Copas. Mas valeu pela alegria contagiante que reinou naquele país. A galera estava super animada e o time ajudava. A Seleção jogava um futebol solto, bonito, aplaudido pelo mundo todo. Também pudera: tínhamos os dois maiores laterais do mundo, Leandro e Júnior, e um meio campo com Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Precisa falar mais alguma coisa? Liderei a galera da Raça Rubro-Negra  e levamos um grupo de trinta torcedores, entre eles Gustavo Villela, Roberto Assaf, Zé Carlos, Mauro Noronha, Mariza e Hélio Moraes, Robson Soares, e o querido Ernesto Cebreiro e seus dois filhos, Marcelo e Eduardo. Ernesto Cebreiro é o espanhol mais brasileiro que já vi. Deve ter uns 70 anos, o que lhe valeu o apelido de "Paizão" da galera. O cara, apesar da idade, tem uma mentalidade de 15 anos, um garotão. Com esse grupo, carregando instrumentos da bateria para cima e para baixo, nos sentimos em casa. Estávamos em pleno Maracanã.

Através da minha amiga Gláucia, que nessa época morava em Barcelona (Espanha), fechamos um hotel em Sevilha, local da primeira fase, só para o grupo Raça. Era um hotel pequeno, com cerca de 40 apartamentos. Não foi difícil completar a lotação, pois, no próprio avião, encontramos várias pessoas sem pacotes de viagem. Cidadezinha maravilhosa, pequena, onde todo mundo se conhecia e, por isso mesmo, era fácil reunir toda a brasileirada à noite para cantar, beber e se divertir. Uma festa. Para completar, chegou um navio da Marinha Mercante do Brasil, com cerca de 3.000 marinheiros, e a Topper, patrocinadora oficial da Seleção de 82, abriu o cofre: distribuiu mais de dez mil camisas amarelas. Éramos chamados de “ os pachecos".

No primeiro jogo, com a Rússia, quase que o bicho pega. O time entrou meio nervoso e o Valdir Perez resolveu comer "peru". Por pouco a vaca não vai pro brejo. Conseguimos virar, com dois golaços (Eder e Sócrates), e aí o time deslanchou.

Antes do jogo contra a Escócia, o segundo da primeira fase, quase que a galera da Raça se estrepa, principalmente eu, líder do grupo. É que a fama dos escoceses era de que os caras batiam até na própria sombra. Aí, por inexperiência (apesar de três Copas nas costas), resolvi reunir o grupo para preparar a nossa "defesa". Juntamos paus, pedras, pedaços de ferro, o diabo, e a televisão mostrando tudo. Que babaquice... O João Saldanha soube da história e correu para o meu hotel. Só faltou me matar. Aí eu soube que a polícia espanhola já estava sabendo da coisa e lambendo os beiços para me pegar. O João me levou até o quartel general dos milicos e falou com um chefão bigodudo (é uma redundância - todo chefe de polícia é bigodudo). Pedi desculpas, afirmando que não agia por má fé, era só para me defender. O cara me deu um esporro (em espanhol - não entendi nada) e falou que a polícia estava atenta para nos defender, caso necessário, e que eles agiriam com rigor, se houvesse qualquer problema. Que furo, meu irmão!

Desarmamos nosso "exército" e fomos assistir ao jogo meio cabreiros. Uma "teta". Nada de pancadaria, muito pelo contrário. Foi uma confraternização geral, com troca de camisas entre escoceses e brasileiros. No campo, foi um chocolate. Fomos aplaudidos antes e depois do jogo. Em trinta anos de futebol, viajando pelo mundo, nunca vi uma briga entre torcedores europeus e brasileiros. Os caras adoram nosso futebol.

Copa do Mundo é sempre uma excursão longa e as pessoas precisam telefonar para o Brasil pra dar e receber notícias. Para isso, descobrimos uma maneira de dar um "pequeno" prejuízo à telefônica espanhola, em Sevilha. Íamos para os telefones públicos e jogávamos café com leite dentro, no lugar das moedas. Era batata; os bichos eram “alérgicosà bebida e estragavam rapidinho, fazendo ligação direta...Então, era só ligar e falar horas com o Brasil. O diabo é que a coisa se espalhou em toda a cidade. O boca a boca correu solto e aí, já viu, né? Num piscar de olhos, não havia mais um aparelho público funcionando. Quando a polícia descobriu, começou a baixar o cacete quando via uma fila de brasileiros perto de um telefone...

Com o truque descoberto, tínhamos que achar outra solução. Foi quando o Mauro lembrou daquelas famosas fichas de telefones no Brasil, que a gente fura, amarra com barbante e, quando completa a ligação, fica segurando o fio até cansar de falar.

- Se dá certo no Brasil, porque não aqui? - indagava ele.

Na Espanha se usam moedas (pesetas) ao invés de fichas, para falar em telefone público. Combinamos que cada um furaria até três moedas para falar nos telefones de Barcelona, já que em Sevilha a coisa estava suja. A desculpa para furar as moedas era a de usá-las como amuletos de recordação. Também juramos que somente o nosso pessoal ficaria sabendo da história. Quem falasse ia levar uns tabefes.

Além de falar de graça com o Brasil, nos divertíamos muito com os porres homéricos do Gustavo e do Roberto Assaf e com as trapalhadas do "paizão". O velhinho não podia ver um rabo de saia que crau... Não sendo padre, nem escocês, ele não aliviava. No hotel, então, era um deus-nos-acuda. As camareiras, coitadas, não tinham um momento de sossego. O pior é que era cada uma mais feia do que a outra. "Paizão" nem ligava; comeu todas, e ainda dizia que eram todas lindas: "lindas como a Luíza Brunet", ele repetia. Era cada bagulho... Nós rolávamos de tanto rir.

Na segunda fase fomos para Barcelona. Metade do grupo de trem, outra de carro, e o restante de avião. Já saímos de Sevilha com reservas em um hotel de quatro estrelas, chamado Regência Colon. O hotel tinha uns dez andares, com trinta apartamentos em cada um. O problema é que nós fechamos o hotel só para o grupo da Raça. O gerente, um fanático torcedor do Brasil e que tinha sido manager do Barcelona, fez um preço especial para nós, com pensão completa, na condição de que a lotação do hotel também fosse completa. Se não lotasse, eu teria que pagar a diferença.

Antes de fechar o negócio, com um medo cão, reuni meu quartel general e perguntei:

- O que vocês acham da idéia?

- Moraes, acho uma furada. Vamos lotar no máximo cem apartamentos. É uma responsabilidade muito grande - Gustavo foi o primeiro a se pronunciar.

Depois veio o Mauro:

- Eu discordo. O preço é bom, trinta dólares, com comida. Vai chover é gente querendo ficar aqui. Quando a galera souber do preço, e que o hotel é todo nosso, tu vai é ter problema pra escolher quem vai ficar. É o seu carisma, chefia...

O "paizão", sempre de sacanagem, topando tudo, acrescentou:

- Ô neguinho, o Mauro tem razão. E se não lotar a gente paga, né? Faz uma vaquinha e paga né?

Enquanto a discussão rolava, o Zé Carlos permanecia calado.

- E aí Zé, qual a tua opinião? Tá calado, pô!

- E adianta falar alguma coisa?! Tu já decidiu mesmo que vai fechar. O resto é charme Moraes, eu te conheço!

Que ódio!!! O diabo é que ele tinha razão: estava realmente decidido que ia fazer a loucura de assumir a responsabilidade. O hotel era ótimo, bem localizado, e o preço muito bom.

Quando chegamos ao hotel, em Barcelona, já havia muita gente nossa, cerca de 60 apartamentos ocupados. Só faltavam 240... Procurei o gerente e dei cinqüenta por cento de adiantamento, e prometi pagar o restante em dois dias. Reuni novamente os líderes do grupo e falei:

- Galera, alguns de vocês vão para as Ramblas da Cataluñia, chamar brasileiros para vir pra cá. Tem muita gente aí sem hotel. Eu vou ficar ao telefone, ligando para os amigos jornalistas e pro Saldanha, para eles divulgarem a notícia. Logo depois me junto a vocês, ok?

As Ramblas da Cataluñia formam uma espécie de calçadão da Atlântica, um lugar onde todo mundo se reúne. Tem de tudo lá: nego cabeludo, careca, hippies, música ao vivo, o diabo. Tudo o que você ainda não viu no mundo, pode ir lá que encontra.

Duas horas depois, a porta do nosso hotel parecia a fila de pagamento do INSS. Um deus-nos-acuda. O Mauro tinha razão: agora o problema era escolher quem podia ficar. A galera foi fácil selecionar. Só entrava quem estivesse vestido com a camisa do Flamengo. Toda a imprensa brasileira e estrangeira alternativa, ou seja, aquela que trabalha avulsa, ficou com a gente. Alguns convidados vips também, como o Carlos Alberto Parreira e mulher, a esposa do Edinho, a Sandra, mulher do Zico, e a minha querida Tia Matilde, mãe do Galo; os jornalistas Roberto Moura, William Prado e o Manolo, correspondente do jornal El Clarim, da Argentina, no Brasil e  todo o quartel general da Topper, patrocinadora oficial da Seleção. Fui nomeado o “Rei de Barcelona”, com direito à capa de revista (France Futebol), uma matéria especial no jornal francês "L'Equipe", além de várias matérias na televisão local e estrangeira.

A atração entre tantos hóspedes era a Tia Matilde, que passou a ser a mascote do grupo. Por ser mãe do Zico, todo mundo queria puxar o seu saco. Claro que ganhei a parada de ser o "babá" oficial dela. Até porque, se alguém ameaçasse meu reinado, seria gentilmente convidado a dormir em outro hotel. Não ia perder nunca a chance de ficar perto da mãe do meu grande ídolo.

A idéia das moedas furadas foi um sucesso, mas não um segredo. Teve até jornalista aproveitando a "beirinha". O Leão (depois técnico do Santos), que não foi convocado, virou assíduo freqüentador das nossas noitadas nos telefones.

Quanto ao futebol, pegamos Argentina e Itália nessa fase. No primeiro jogo contra a Argentina, deu nojo o rebolado de alguns jogadores da Seleção Brasileira. Era toquinho de calcanhar pra cá, piruetas pra lá, uma foda!!!. Só livro a cara do Zico, Falcão e Sócrates. Como exibição foi um primor, mas nós estávamos ali para ganhar um campeonato mundial de futebol, e não de circo, pô! Metemos 3 a 1, fácil. No dia seguinte, os elogios fartos e exagerados da imprensa de todo o mundo. Um oba-oba irritante. "Brasil - Espetáculo de outra galáxia" foi a manchete mais modesta que li. Todos só falavam no jogo da semifinal, esquecendo que teríamos que jogar ainda contra a Itália. É que a Itália se classificou sabe Deus como. Na primeira fase empatou três vezes e entrou pelo saldo de gols. Depois ganhou da Argentina, jogando mal e apelando. Teve um jogador da Seleção Italiana, o Gentile, que fez 52 faltas no Maradona e não foi expulso. Ninguém levava fé neles.

A máscara ou o excesso de confiança da Seleção Brasileira contagiou uma parte do grupo. Véspera do jogo contra a Itália, a brasileirada só falava em goleada, em ganhar de cinco e essas coisas. A torcida e a imprensa estavam completamente mascaradas; a humildade foi para o brejo e eu comecei a ficar preocupado. Não costumo ir atrás do oba-oba, até porque tenho muito tempo de estrada para fazer essa besteira. Fui chamado para uma entrevista na TV dinamarquesa e me lembro bem do que falei. Quando o intérprete me perguntou de quanto iríamos ganhar, eu disse:

- Olha, o Brasil está exagerando no preciosismo das jogadas. Tem jogador rebolando. Nós temos realmente mais time do que eles, e a tendência é ganhar o jogo. Acho que, se a Itália fizer um gol no começo, o rebolado acaba e metemos de quatro. Senão, vamos até ganhar, mas no sufoco.

Apesar da preocupação, eu estava confiante e nunca na vida imaginei perder aquele jogo. Tanto que estava tudo preparado para a próxima partida. Além disso, aceitei um convite dos jornalistas Roberto Moura e William Prado para ir, no dia seguinte, ao Principado de Andorra fazer compras.

Nada deu certo no jogo. Primeiro, a polícia prendeu nosso papel higiênico. Depois, a galera entrou no estádio completamente bêbada . Todo mundo torto. Quando a bola rolou, começamos bem. O time estava solto, jogando legal. Numa bobeira, a Itália faz o primeiro. O Zé, o único sóbrio, perguntou:

- E agora?

- Agora vamos empatar e ganhar o jogo - respondi.

Não demorou muito o Sócrates empatou. Depois veio aquela jogada burra do Cerezo, apesar de eu achar que a falha maior foi do Luisinho, que não foi para matar a jogada. Se é o Edinho, jogava o Paolo Rossi lá na Calábria...Empatamos de novo e, no final, eles fizeram o gol que nos mandou de volta para a casa mais cedo. Foi uma das maiores decepções que eu tive com o futebol.

Além da frustração pela eliminação do Brasil, ainda em Barcelona descobri que o Zico ia ser vendido para a Udinense da Itália (time onde jogava o Edininho), no término do seu contrato com o Flamengo. Aí, meu irmão, voltei para o Rio mais arrasado, embora com a pequena esperança de que acontecesse um milagre e o Galo ficasse na Gávea, o que, infelizmente, não ocorreu. No final do Campeonato Brasileiro de 1983, ele nos deixou e foi jogar na Udinense, um simpático timinho da bota, com um agravante: as cores da camisa deles são preto e branco... putz!!! Deu vontade de dar um tiro de canhão na bunda do Presidente do Flamengo que o vendeu...