Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Copa de 86 - México

COPA DO MUNDO DE 86 - MÉXICO


Ano de 1986. Ano da Copa do Mundo no México. Nos preparamos para a viagem: só da Raça Rubro-Negra éramos 120 pessoas. No final, o grupo teve a grande baixa. O Zé Carlos resolveu trabalhar uns dois meses para levar mais grana na viagem. Já não gostei; trabalho não combinava bem com ele. Além de trabalhar, o cara resolveu se casar. Aí, entornou o caldo. Quando soube do casório, que ocorreu quase em segredo, só fiz uma pergunta:

- Com quantos meses ela tá?

Ele, rindo, jurou que não tinha filho na parada. E não tinha mesmo. Sempre disse que mulher e/ou trabalho não combinam bem com a atividade de torcedor fanático. Não deu outra; o Zé nos deixou na mão e não foi à Copa. Ele jura que tinha passagens para ir à semi-final e à final, mas aí foi a Seleção Brasileira que não ajudou...

Eu e o Gustavo Villela fomos chefiando a "delegação" da Raça. Compramos as passagens na agência do José Roberto Wright. Só tinha gente boa; alguns, até companheiros de outras Copas: Hélio Moraes, Mariza, Caco, do Juventus de Copacabana, Marcelo (Barbudo), Mauro Noronha e o "paizão", Ernesto Cebreiro, com os filhos Marcelo e Eduardo. Fomos de Pan-Am, via Miami. De lá pegamos outro vôo para a Cidade do México, depois um ônibus todo fudido para Guadalajara onde montamos nosso quartel general.

O vôo foi uma zona total. Uma festa até Miami. Até os comissários, normalmente mal humorados, entraram no esquema. Foi com eles que combinamos pregar um susto no Barbudo. O plano era encher a mochila dele com as mantas do avião e dedurá-lo no final da viagem. Um comissário, então, se encarregaria de dar voz de prisão pro moleque. O Gustavo foi o nosso porta-voz para a tripulação, que topou a brincadeira.

Eu levei a "vítima" para o banheiro, enquanto o pessoal enchia a mochila com as "lembrancinhas surrupiadas" do avião. Tudo armado era só esperar o pouso do avião para ver no que ia dar. E o bom de sacanear o Barbudo é que ele era super esperto. Moleque de 15 anos, nascido e criado em Copacabana. Safo mesmo. Genial.

Quando o vôo pousou em Miami, deixamos todos os outros passageiros descerem e fomos juntos, em grupo. Todo mundo vestido com a camisa do Flamengo, claro (traje obrigatório). Na porta do avião, o comissário pediu para verificar a mochila do Barbudo. Não deu outra. Encontrou os "ganhos" dentro e deu-lhe voz de prisão. O bichinho quase morreu. Até desconfiar que era mutreta... hilariante!

Em Guadalajara fechamos um hotel para ser o nosso Quartel General. O nome da espelunca era "Três Estrelas" e o valor da diária, um dólar por um apartamento duplo. É isso mesmo: um único dólar. O hotel era bonzinho, perto da rodoviária, com banho privativo e cozinha. Podíamos fazer café, comida, enfim, usar tudo sem nenhuma despesa adicional. Basta dizer que eu gastei US$ 250,00 em toda a Copa do México. O "paizão" Ernesto toda hora chegava pra mim para perguntar alguma coisa sobre o México. Eu entendia que o que ele queria era saber sobre as "muchachas" mexicanas, mas me fazia de desentendido. E ele insistia:

- Moraes, tu conheces bem o México?

- Conheço paizão...

- Me fale de lá...

- Legal...

- Como, legal? E as coisas...

- Que coisas, "paizão"? - eu louco de vontade de rir...

Aí ele se rendia e dizia baixinho, para os filhos não ouvirem:

- Eu quero saber das mulheres ... das "muchachas"... É igual ao cinema?

- Cada uma melhor do que a outra. Sabe como é, mistura de índia com branco, maravilhosas...

Ele babando:

- Vou comer todas!

Coitadas das camareiras do hotel. O velhinho chegava junto toda hora.

O Brasil ficou concentrado fora da cidade, a quase 50km de distância. Uma desgraça. Para ir ver os treinos e colocar a faixa da Raça, tínhamos que pegar um táxi ou alugar um carro. Foi uma das piores Copas que eu já fiz: pelo clima negativo, pelo baixo astral da delegação, comandada pelo aspone do Nabi Abi Chedid. O time também não estava bem (e tinha muita fera: Zico, Sócrates, Falcão, Careca, Edinho). O Telê Santana, talvez escaldado pela derrota de 82, jogou com dois cabeças de área (ou cabeças de bagre): o Alemão e o Ézio, deixando no banco o Falcão. O Zico, embora vindo de séria contusão, só entrava no segundo tempo, assim mesmo quando a torcida se esgoelava de tanto gritar. O Zico machucado, com uma perna só, jogava mais do que a metade daquele time.

Um fato que merece registro foi o que aconteceu no primeiro jogo do Brasil. Os times estavam perfilados para a execução dos hinos. Tocou o da Espanha, e nada do Hino do Brasil. Até que começaram a tocar o hino errado e o Edinho, líder e capitão da equipe, mandou o time se retirar e bater bola.

No jogo seguinte eu levei um esporro de um grupo de paulistas, que tinha ido numa excursão. Uma mocinha transtornada botou o dedo na minha cara e disse:

- Como é que a Raça Rubro-Negra deixou acontecer aquilo? Por que vocês não cantaram o Hino do Brasil? - e, ainda mais nervosa, completou:

- Se vocês começassem a cantar, todo o estádio ia acompanhar...Vocês fizeram isso no Maracanã, por que não podiam repetir aqui?

Foi um custo explicar que, no Maracanã, estávamos em casa, falando a mesma língua. Lá era outro país, outro idioma. Seria impossível repetir o feito. Apesar de todas as explicações, ela não concordou e não ficou satisfeita. Aos trancos e barrancos, vencendo jogos mais pela mediocridade dos adversários, chegamos àquele maldito jogo contra a França...O jogo estava bom pra gente. Fizemos 1x0 e o time estava bem. Numa bobeira, eles empataram. Perdemos muitos gols. Aí a torcida começou a pedir a entrada do Zico. Lá pelas tantas, o Telê chamou o Galo, que aqueceu e entrou. Na primeira bola ele partiu em direção ao gol e meteu “redondinha” para o Branco. Era só fazer... O goleirinho saiu e fez pênalti (toda vez que revejo o lance tenho a convicção de que, se o Branco não se jogasse no chão, faria o gol). O Galo perguntou ao Sócrates se ele queria bater. O Sócrates balançou a cabeça que não...E aí...Foi muito triste. Uma grande decepção, pela desclassificação e, principalmente, pelo Galo. Ele não merecia aquilo. Deus, naquele momento, não foi justo.

No dia seguinte a galera se dividiu: parte voltou para o Brasil e o restante foi comprar “muamba” em Miami.