Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Eliminatórias de 86 - O Vôo dos Bicheiros

O Zé Carlos estava desanimando. Era 1985, o Flamengo sem Zico, sem Júnior e, pela primeira vez na década, fora da Copa Libertadores. Jogos fora do Brasil, só em amistosos. O clube começava a afundar, pagando os pecados das administrações ruins. O quadro, aliás, só fez piorar, e a corrente de aproveitadores (que se revezavam na presidência) só foi quebrada quando o Kleber Leite assumiu, em 95.

O hilário disso tudo é que esses caras acham que estão fazendo um “sacrifício” em dirigir o Flamengo. Não é nada disso: eles querem é o poder e o dinheiro decorrente disso. Um exemplo? Na venda de um jogador nosso para a Itália, um dirigente levou de comissão, na época, US$200,000.00, em verdinhas vivas. Para azar do desgraçado, o doleiro que fez a operação é também meu doleiro. Eu quase dou um flagrante nele e só não o fiz em respeito ao meu amigo (doleiro).

Mas o Zico ia jogar pela Seleção Brasileira e quando o Galo vai jogar... Fizemos juntos as eliminatórias para a Copa de 86. Na primeira fase o Brasil pegou a Bolívia e o Paraguai. Primeiro jogo, contra a Bolívia: fomos para Santa Cruz De La Sierra na mordomia, bem diferente da viagem de 1981. De avião e com hotel reservado (o mesmo da Seleção). Chegamos ao hotel na mesma hora em que chegava a delegação brasileira. Na recepção pedimos nosso apartamento e, para surpresa, o gerente tinha cancelado as reservas, dando o nosso quarto para o Pelé, que estava como comentarista de TV Bandeirantes..

Foi uma gritaria só. O Zé berrava que nem um louco para o gerente do hotel:

- Um absurdo o que vocês fizeram. O que o Pelé tem de mais especial do que nós!?

Também gritei, esperneei, queria por que queria o meu apartamento que, aliás, já havia sido pago no Brasil. O Pelé nem sabia da história. Sua assessoria é que tinha reservado três apartamentos para o Negão e os bolivianos, para fazerem média, cederam logo o nosso. Logo veio o Júnior, que deu uma força, e depois desceu o João Saldanha, que soltou o verbo:

- Vocês têm que se virar e arranjar um apartamento para os garotos. Cadê o Pelé? Eu falo com ele. Pra quê, diabos, o Negão quer três apartamentos ?

Depois da confusão armada, o hotel nos colocou numa suíte master, pelo mesmo preço do apartamento standard. Cortesia da casa. O Zico ainda jogava na Udinese e o Sócrates na Fiorentina. Já havia um forte movimento no Rio para trazer o Galo de volta ao Mengão. Quanto ao Doutor, cada vez que ele via a gente, comentava com alguém:

- Esses aí são os torcedores do meu futuro time...

Nós, como havíamos feito na Itália, levamos duas faixas. A da Raça, e outra que dizia "ZICO JÁ". Penduramos a última no hall do hotel. O Galo ficou muito contente, o que reforçou a nossa impressão de que logo teríamos Zico e Sócrates, juntos, na Gávea.

O José Lázaro (irmão de Marcos Lázaro, o empresário da moda, na época) conseguiu credenciais de jornalistas para mim e para o Zé Carlos. Eu era o fotógrafo de campo, e ele, o repórter. Assistimos ao jogo de dentro do gramado, eu com uma câmera, e o Zé com papel e caneta. Não bati uma foto e ele não escreveu uma linha . Mas o golpe funcionou bem e pudemos conferir, de perto, a vitória do Brasil.

Depois foi o jogo contra o Paraguai. Fizemos uma coisa inteligente, dessa vez, e evitamos o hotel da delegação (e do Pelé). Ficamos num hotelzinho de um casal de alemães, com jeito de ex-nazistas, muito confortável, com direito a café e jantar. O melhor é que dividimos o hotel com a equipe da TV Manchete, que tinha o João Saldanha como comentarista. Toda noite era sentar no chão e ouvir histórias, que iam desde a presença dele na Revolução Chinesa até às trapalhadas do Garrincha. Numa noite, o Marcelo Rezende fez um belo churrasco. Era bem melhor do que ficar perdendo dinheiro em cassino de segunda classe.

Os vôos para Assunção estavam todos lotados e só através do Aldir Malagueta, na época meu amigo e supervisor na VARIG, conseguimos dois lugares para a ida. A volta ficou em aberto e tínhamos que nos virar no aeroporto para tentar embarcar. O problema era que segunda-feira, as nove da manhã (o jogo era domingo), o pai do Zé entrava na faca: ia operar para colocar quatro safenas. Ele tinha que voltar de qualquer maneira. Eu tranqüilizei o cara. Sabia que conseguiríamos voltar a tempo.

Na sexta-feira fomos para o Galeão tranqüilos, com nossos bilhetes confirmados. Chegando lá soubemos que nossas reservas tinham sido canceladas. Aí, a porrada comeu. Fiz um escândalo com direito a Polícia Federal e o escambau. Como éramos super conhecidos no aeroporto, a torcida a nosso favor era tão grande (até dos guardas da Infraero) que o gerente da Varig amarelou e descobriu dois lugares sobrando.

Por causa da confusão, o vôo atrasou mais de meia hora. Quando entramos no aparelho, veio a surpresa maior. Sabem quem veio para voar? Toda a cúpula do jogo do bicho –tanto a executiva, quanto a legislativa. Aí entendemos o motivo do cancelamento de nossas reservas. Os caras tinham lotado todo o avião. É que, na véspera, a polícia tinha desencadeado uma blitz monstruosa para prender os bicheiros e fecharam todos os pontos de bicho do Rio. Estavam todos fugindo para o Paraguai. Iam ver o jogo e aproveitar para jogar nos cassinos, enquanto a coisa esfriava no Rio. Tudo a convite dos "hermanos" (donos dos cassinos paraguaios...BrasiiiLLL!!!...).

Como já disse, estava tanto o executivo – Anísio, Nelsinho, Castor, Miro, Carlinhos Maracanã – , quanto o legislativo – deputados estaduais e federais, eleitos para proteger os interesses dos bicheiros. Eu vi um famoso deputado estadual com um maço de dólares no bolso que parecia um rolo de papel higiênico verde. De forasteiros, no avião, só eu e o Zé.

Quando entendemos o que se passava, sentamos nos nossos lugares e o Zé disse:

- Moraes, olha só isso. Tá todo mundo fugindo dos canas... Só tem gente boa...

- Caralho, vamos ser presos assim que chegarmos lá, ou então vamos morrer, se a Aeronáutica resolver derrubar o avião.

- Vamos desistir? - indagou ele.

- De jeito nenhum. Não devemos nada, vamos encarar.

- É, mas se formos em cana, vamos ser os únicos a levar porrada. Até descobrirem que galo não late, nós vamos nos fuder - argumentou.

- Relaxa, porra. Vamos nessa.

Sentamos no meio do avião, naquelas filas de quatro poltronas. De lá dava para ver a primeira classe. O Zé olhava atentamente e mandou esta:

- Olha lá o ladrão do Anísio...

O cara que estava sentado do lado dele bateu nas suas costas e falou:

- O cara que você chamou de ladrão é o meu irmão - era o Nélson David, mais conhecido como Nelsinho.

O Zé ficou branco, amarelo, verde...

- Desculpa... - gaguejou...

- Nada não, só toma mais cuidado da próxima vez, antes de abrir a boca para falar besteira.

O Nelsinho tirou as palavras da minha boca. Depois do incidente ficamos mudos e tensos. O Zé cantava todos os sambas da Beija-Flor, para ver se fazia uma média. Aos poucos relaxamos, até porque alguém me reconheceu e espalhou pelo avião que eu era o chefe da Raça, e que tinha feito isso e aquilo para ver o Flamengo. Virei atração, e o Zé dormiu.

Assim que chegamos a Assunção começamos a tratar do problema da volta. Pela primeira vez, porém, não havia realmente lugar disponível. Era toda a imprensa nacional, toda a paulicéia, mais os bicheiros e os "convidados" da CBF querendo voltar rápido. Não havia jumbo que desse jeito. Quando o problema do pai do Zé se espalhou, alguém lembrou que havia uma excursão do Rio que tinha acabado de chegar. Imediatamente procuramos os caras. Por coincidência, quem comandava o grupo era o meu amigo Beto Tupinambá. Claro que éramos bem-vindos. Só que a excursão era via Foz do Iguaçu, ou seja, assim que terminasse a partida pegaríamos um ônibus até Foz e, de lá, um avião fretado para o Rio, descendo no Santos Dumont.

Tudo em ordem. Novamente o Zé Lázaro conseguiu credenciais para nós (fotógrafo e repórter). Poderíamos ficar no gramado. O diabo eram as “mochilas”, porque teríamos que sair direto do estádio para Foz (na excussão do Beto). Fazer o quê? Fomos para o estádio com mochila e tudo. A polícia paraguaia estava revistando todo mundo dos pés à cabeça, já que o ditador Alfredo Stroessner achou por bem ir ao jogo. Todos formavam uma fila para serem revistados.

Quando chegou a nossa vez, os milicos não entenderam nada: diante deles estavam um fotógrafo e um repórter – era o que diziam as credenciais – , prontos para entrarem no estádio, sem nem uma câmera ou um pedaço de papel para escrever. Em compensação, na bagagem revistada, eles encontraram cuecas, meias, tênis de corrida etc.

Jogo chato, encardido. Nunca foi fácil ganhar do Paraguai e eles tinham um bom time. O clima era de guerra mesmo. Estávamos no gramado junto com a imprensa do Brasil. Quando os times entraram em campo, o raio do juiz argentino cismou em fazer uma “varredura” nas pessoas que estavam no gramado. Só podiam ficar credenciados, especialmente os fotógrafos. O pessoal do rádio, nem pensar. O Loureiro Neto (repórter da Rádio Globo) estava se escondendo do juiz reserva que nem o diabo da cruz. O cara vinha prum lado e ele saía pro outro. Queria porque queria ficar dentro do gramado. Eu saquei e pensei:
- Se esse puto pode, eu também posso...E grudei nele.

Ele ficou desesperado:

- Moraes, sai de perto de mim, sai, sai...
- Saio o caralho... Se tu ficar eu fico.
- Ô, filho da puta, tu quer me fuder? Eu tô trabalhando, porra!!!
- Eu também. Olha a minha credencial, ó...

- Ô caralho, faz isso comigo não, vai... E lá vem os caras, foge!
- Nada. Vamos ficar aqui, juntinhos...

Não deu outra. Nos descobriram e fomos devidamente postos para fora do gramado. O que o Loureiro me xingou...

Assim que o jogo começou eu “subornei” o cara do portão com uma camisa do Brasil e voltei para o gramado. E o Loureiro...? Bem, o Loureiro fez o jogo da cabine da Rádio Globo, lá em cima. Me xingando de todos os nomes que a censura poderia deixar...

Aí, assisti a um lance que me deu certeza da vitória. Com cinco minutos de jogo o juizinho “arranjou” uma falta perigosa para o Paraguai. O Edinho partiu pra cima dele e deu-lhe um esporro... Botou o dedo na cara do juiz. Pensei que o cara fosse expulsá-lo. Que nada. O juiz ficou pianinho e o jogo foi uma tranqüilidade. Ganhamos de 2x0, com um golaço do Zico.

Terminou o jogo, corremos para o ônibus. Havia a preocupação de que o pessoal da excursão quisesse fazer turismo, comer bem etc. o que, felizmente, não ocorreu. Saímos de Assunção no início da noite e chegamos a Foz de manhã. Às 7h pegamos nosso vôo e chegamos ao Rio antes das 10h. Perfeito. Fomos direto para o hospital.

Como não sou chegado a essas coisas, fui embora quando soube que a operação já começara. Mas o Zé resolveu assistir tudo no auditório reservado aos alunos de medicina. O cara nasceu para sentar numa arquibancada...

No jogo de volta contra o Paraguai, no Maracanã, aconteceu uma coisa que me encheu de orgulho de pertencer à Raça. O estádio estava cheio, a galera super motivada com a provável volta do Zico e a vinda do Sócrates. Na hora do jogo, os times estavam perfilados esperando a execução dos hinos nacionais, e nada...O sistema de som pifou. Aí, os times se dispersaram e foram para o centro do gramado. Nisso o Edu, que era o nosso Waldick Soriano, isto é, era quem puxava todas as músicas da Raça, teve a idéia:

Galera, vamos cantar o Hino Nacional - e começou...

Todo o estádio acompanhou, levando o ritmo nas palmas: arquibancadas, cadeiras, geral, cadeiras especiais, os jogadores, e até o juiz, um argentino. Uma cena fantástica. Mais de cem mil pessoas cantando e brincando. Foi de arrepiar. Para mim, um dos momentos mais bonitos que já vi no Maracanã. Quando acabou, todo mundo bateu palmas e se abraçou.

No dia seguinte recebi ligações de todo mundo, me dando os parabéns. Na realidade, tinham que dar os parabéns a quem de direito: a Raça Rubro-Negra.