Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Mundial de Clubes (Tokyo)

FLAMENGO NO MUNDIAL DE CLUBES EM TÓQUIO - 1981

Todo mundo queria ir a Tóquio. Afinal, quem não queria ver o Flamengo Campeão do Mundo? O diabo era o preço. Várias agências de viagens queriam faturar em cima do nome Flamengo, vendendo pacotes a preços proibitivos. Eu e o Zé Carlos descobrimos que a Imperial Turismo, uma operadora de viagem, tinha bolado um plano especial, com o intuito de divulgar o turismo no Japão, lugar até então inacessível para o turista brasileiro.

Partimos para lá e o pessoal da Imperial nos indicou duas agências, já que eles, como operadores, não podiam vender os pacotes. De posse do nome e do endereço das agências, procuramos a que desse melhores condições para o grupo. Escolhemos uma e divulgamos o nome para a galera. O chato é que o Cláudio, o César, e o Ramon acreditaram nas promessas mirabolantes da agência concorrente, que prometeu passagens para os três, caso levassem o pessoal para lá.

Muito constrangido, mantive a minha palavra com a primeira agência, até porque o preço era melhor. A concorrência entre as agências dividiu a galera e, no final, só foram 46 pessoas, sendo que somente uns dez eram de torcedores de arquibancada. O resto, só bicão aproveitando o preço barato. Infelizmente, a agência do Cláudio só vendeu onze pacotes e ofereceu apenas um, para os três. Eles bateram o pé: ou iam os três, ou não ia ninguém. Se estreparam: nenhum foi.

Havia dois tipos de pacotes: um, de sete dias, que fazia Rio-Tóquio-Rio, com hotel, translado e ingresso para o jogo; e outro, com direito a ir ao Havaí, Los Angeles e Nova Iorque. Escolhi o primeiro porque não fui fazer turismo: fui ver futebol. Fui ver o Flamengo Campeão do Mundo.

Saímos de VARIG para Tóquio, via Los Angeles, onde embarcou a delegação do Flamengo, que estava lá para se adaptar ao fuso horário. Foram 32 horas de vôo, com mudanças constantes de fuso horário, e comida, muita comida. Era café da manhã, almoço, jantar, não dava tempo nem de escovar os dentes. Nunca comi tanto num avião. Chegamos em Tóquio as três da tarde, morrendo de cansaço. O tiro de misericórdia foi o trajeto do aeroporto para o hotel. Seis horas num engarrafamento de dar inveja à rua das Laranjeiras. E olha que a distância não passava de 40 quilômetros.

No hall do hotel tinha uma multidão de brasileiros residentes no Japão. Eu já saí do Brasil com a idéia de fazer uma faixa da Raça em japonês. Assim que cheguei, escolhi um dos brasucas e pedi ajuda. Subi para o meu quarto, deixei as malas, tomei um banho e fui à luta. Juntamente com o Zé e o brasuca, fomos comprar pano preto. No saguão do hotel fizemos a faixa e, com esparadrapo, as letras. Ficou muito bonita, elogiada por toda a delegação do Flamengo.

Por falar em saguão, ele testemunhou os efeitos do fuso horário no corpo humano. Todo dia, lá pelas quatro ou cinco da tarde, depois do almoço, era comum ver a brasileirada dormindo nos amplos sofás, pensando que eram quatro da manhã.

No hotel, o excelente Takanawa Prince, as refeições não estavam incluídas no pacote, só o café da manhã. Acontece que, no térreo, havia vários restaurantes, e o caixa era único, no meio de um corredor. Você comia em qualquer um deles, recebia a nota do garçom, saía do restaurante e ia ao caixa pagar a conta. O Zé Carlos jura que foi “esquecimento”, mas ele não pagou a primeira. A partir daí, ninguém mais se lembrava que tinha que pagar na saída. Eu, o Zé (de novo), o Siri e o Tampa passamos nossos dias no Japão com amnésia, guardando as notas como recordação. Só lembramos que tínhamos que pagar as refeições quando estávamos no Brasil, dois anos depois...

Na véspera da partida, para relaxar, fomos fazer turismo em Tóquio. Entramos numa loja da Mizuno para comprar tênis e material esportivo. Aí o problema da amnésia foi grave. Eu trouxe 16 pares de tênis e somente paguei dois. Puro esquecimento...O Siri, então, exagerou - levou o que podia, no que foi acompanhado pelo Tampa. Os dois levavam três conjuntos de trainning para experimentar, e devolviam um, vestindo a roupa por cima dos outros dois. O Zé tirou onda de honesto (só levou algumas meias), mas depois me confessou que não levou nada mais porque nenhum tênis cabia no seu pé. Ele calça 44 e o maior era 40!

Ele até hoje se queixa:

- Pois é, tinha um Mizuno de corrida lindão, levinho...Pena que ficou um pouco apertado no meu pé...

O tênis era tamanho 39. Essa história de levar coisas do Japão pegou muito mal. Teve muito jogador e jornalista entrando descalço em loja e saindo calçado, sem pagar nada.

No dia do jogo estávamos "concentrados" no hall do hotel, prontos para ir pro estádio, quando eu ouço o Zé gritar:

- Que porra é essa?! - e apontava, indignado, para um grupo de pessoas conversando.

Sua raiva era voltada a um cidadão vestido com a camisa do Botafogo. Imaginem, uma camisa alvi-negra ali, em pleno Japão. Só podia ser para secar. Pensamos em matar o cara, mas nos controlamos. Afinal, era apenas mais um dos forasteiros que aproveitaram a passagem barata para fazer turismo. O Ari (era o nome do cachorrão) é, hoje em dia, meu amigo e sempre me garantiu que torceu pelo Flamengo porque, afinal, nós éramos o Brasil... É difícil de engolir, mas, vá lá.

Passado o incidente com o botafoguense, partimos cedo para o estádio. O clima era de confiança total; estávamos absolutamente tranqüilos. Enfrentar times europeus foi sempre uma "teta". No estádio, a Toyota fez uma festa muito bonita. Distribuiu, aproximadamente, cinco mil camisas e bandeiras com as cores do Flamengo, e igual número com as do Liverpool. Aparentemente o estádio estava dividido, mas, como havia mais brasileiros do que ingleses, atraímos o povão para o nosso lado. Com a faixa da Raça na mão, tentamos explicar a um guarda que precisávamos entrar no campo para colocá-la. Gesticulando muito, conseguimos entrar em campo (nada divide a arquibancada do gramado, exceto um muro de um metro de altura), pendurar a faixa e dar uma curtida. Caminhamos pela pista do estádio olímpico: vimos de perto os Toyotas que o Zico e o Nunes levariam de presente, fomos saudar parte da torcida que estava no outro lado e voltamos. Uma festa. Só faltava o meu Mengão ganhar.

Metemos 3 x 0 neles, com vinte minutos de jogo. O time jogava como uma orquestra e o Zico queria jogo, e quando o Galo quer jogo... Acabou com eles. Foi uma covardia. Não deu nem muita emoção, tamanha foi a facilidade. Não houve comemoração em Tóquio. Somente no hall do hotel uma mini batucada, e negozinho tirando fotos com os jogadores e a taça. E só! À noite, nosso grupo partia de volta, enquanto que o resto do pessoal tinha mais um dia de "compras" antes de ir para o Havaí. Soube depois que teve gente que pegou até sapatilha de corredor, dessas que só servem se seu nome é Robson Caetano, só pelo prazer de comprar com pagamento "a perder de vista"...