Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Libertadores da América - 1984 - Llamando el Senor Kleber Babaca

COPA LIBERTADORES DA AMÉRICA DE 84
"Llamando el Señor Kleber Babaca..."

O Flamengo disputava a Libertadores de 1984 e foi fazer dois jogos na Colômbia, um em Cali, outro em Barranquilla. A direção do clube resolveu fretar um avião para levar a delegação e vender o resto dos lugares para a imprensa e a torcida.

O responsável pela excursão era o empresário Marcos Lázaro, que montou um stand de vendas na Gávea. Meio a contragosto, ressabiados pelo que ocorrera em Milão, eu e o Zé resolvemos ir no vôo. A esta altura, em decorrência dos acontecimentos na Itália, nós pegamos verdadeiro ódio de cartolas. Continuávamos a viajar com o Flamengo, no mesmo vôo, ficando no mesmo hotel, mas economizávamos até cumprimento para os caras, verdadeiros oportunistas que só sabem se servir do clube. Mas não havia outro jeito para ir ver o jogo. Se fôssemos de avião regular não conseguiríamos as conexões a tempo. Então, a solução foi ir à Gávea fechar o pacote, que incluía passagem, hotel com refeições e entradas para os jogos.

Fui com o Zé e perguntei ao burocrata que vendia as passagens:

- Quantos torcedores já compraram o pacote?

- Olha, informações pelo telefone, eu já dei mais de mil, mas até agora ninguém comprou nada - respondeu.

E o Zé, preocupado:

- Ninguém mesmo? O vôo sai depois de amanhã.

- Nada, nenhunzinho. Com certeza, mesmo, só setenta membros da delegação e uns vinte jornalistas.

- Setenta? Isso é recorde mundial...

Ele:
- Meu irmão, é um tal de convidado a aparecer...Até o síndico da massa falida do Helal vai. A toda hora aparece um dirigente aqui e diz: "Anota este nome. É meu convidado...". De torcida, mesmo, só devem ir um tal de Moraes e um tal de Antônio Carlos que, dizem, vão em todas. Mas, até agora, nem eles apareceram.

O Zé retificou:

- Não é Antônio, é José Carlos, e ele sou eu. Quem te disse que a gente ía?!

- É a única coisa que se fala aqui. Vi dirigente falando aí que só podia contar com esse dinheiro... E você é o Moraes, né? - perguntou, apontando para mim.

Explodimos de raiva. Não íamos entregar o cara, mas a vontade era ir ao Gabinete do Presidente e mijar em cima da cabeça do puto. O meu consolo era saber que eles só viajam, só aparecem, quando estão no poder e, assim mesmo, quando é de graça. Quando perdem a eleição e muda a diretoria, somem todos; nem no Maracanã aparecem. Eu nunca vi um dirigente meter a mão no bolso (dele) e pagar um ingresso. Nunca vi.

Para aumentar a raiva, me entra na sala o “querido” Michel Assef, com mais uma relação de convidados, entre eles o indefectível Caixa D'água, o Alexandre Macedo, e o fantástico Jorge Roberto da Silveira (um dos poucos políticos em quem voto com prazer). O Caixa foi como "Presidente de Honra da Delegação". É mole?

Decidimos ir assim mesmo. Éramos os otários da excursão. Pagamos 50% de sinal e o resto num cheque para 30 dias depois. Dei um cheque meu como garantia da dívida: cerca de dois mil dólares.

Lotação completa: mais de 130 pessoas no vôo, entre jogadores, comissão técnica, dirigentes, "ilustres convidados", bicões, jornalistas, e a "torcida" – eu e Zé Carlos. A parte da frente do avião ficou reservada para os jornalistas e nós, e atrás foi a delegação e convidados.

Na nossa parte foi uma bagunça total, comandada pelo Kleber Leite, ex-presidente do Flamengo (na época repórter da Rádio Globo). Ele era um sacana. Comandava uma guerra de travesseiros que não deixava ninguém dormir. O saudoso Jorge Kuri, então, sofria. Levava cada porrada na careca! A cada uma ele reclamava:

- Ô, Kleber, sossega! Parece uma criança.

E era verdade. Pareciam um monte de moleques (no bom sentido, claro), numa sala de aula sem professor. E só tinha peso-pesado: João Saldanha, Jorge Kuri, Washington Rodrigues, Ronaldo Castro, José Carlos Araújo, Luiz Mendes, Tino Marcos e o pessoal da TV Globo. Todo mundo voltando à infância.

Assim que chegamos ao hotel, já estava esperando a delegação uma louraça de uns 25 anos... Maravilhosa. Todo mundo ficou ligado na mulher, e o Nunes se adiantou logo e disse:
- Vou comer hoje...É só botar as malas e crau!!!

Era aposta para todos os lados pra saber quem ia papar a "Babalú colombiana" primeiro. E ela nada de se definir a quem atacar. Ficou rodando por ali, dando mole para todo mundo, mas sem chegar em ninguém. Levei um susto quando, na hora do jantar, o monumento se aproximou da minha mesa e me pediu para sentar. Macaco velho, saquei logo: "É furada. Tem mosca nessa sopa. Com todo mundo famoso aí e eu sou logo o escolhido?!" Mas resolvi dar linha na pipa...

E o mulheraço começou a falar, suspirar e acabou me convidando para conhecer a cidade, os amigos dela, a dormir na casa dela... E veio com um papo que tinha um "primo" em São Paulo que estava doente, e que faria qualquer coisa que eu quisesse, desde que eu levasse "uma encomenda" para o moribundo.

Claro que saí fora da parada. Até hoje o Zé me sacaneia, dizendo que eu devia ter comido e depois me negado a levar a tal encomenda. Isso na Colômbia! E se a mulher me manda dar uns tecos? Na manhã seguinte, no café da manhã, todo mundo ficou sabendo da história, e tive que agüentar mais sacanagem. E o papo rolava à beira da piscina do hotel quando, de repente, os auto-falantes começaram a chamar:

- Llamando el señor Kleber Babaca, por favor, señor Kleber Babaca se apresente en la recepcion...

Foi uma gargalhada só. Teve gente se jogando na piscina de tanto rir. E o alto-falante não parava:
- Señor Kleber Babaca, señor Kleber Babaca, comparecer urgente a la recepcion!

O Jorge Kuri, quase sem ar de tanto rir, só conseguia falar:

- Isso é coisa do Ronaldo (Ronaldo Castro, repórter de rádio)...

Empatamos o primeiro jogo contra o América, de Cali, e ganhamos o segundo. Esse, contra o Atlético Júnior, de Barranquilla, foi uma pedreira. O Fillol defendeu um pênalti no último minuto de jogo. E consta que o juiz tinha sido “cantado” para ajudar o Flamengo. Quando interpelado sobre a marcação do pênalti, ele teria dito: - não reclama não que o Fillol se mexeu. Se quisesse, tinha mandado voltar. Não se pode confiar nesses caras mesmo.

No dia seguinte, após o jogo em Barranquila, estávamos no saguão do hotel esperando a hora de ir para o aeroporto e retornar ao Brasil. Em um grupo formado pelo Kleber Leite, eu, Zé Carlos, Helal e mais algumas pessoas, o papo era sobre o jogo e o Kleber manda essa:

- “Se algum dia eu for presidente do Flamengo, nunca que um cabeça de bagre ou um técnico incompetente vão jogar e dirigir meu time. Nunca! Jamais vou permitir que um cabeça de bagre vista o manto sagrado. Antes do jogo vou ao vestiário perguntar ao técnico qual o time: se tiver caneleiro eu demito o cara na hora... rua...”

Realmente. No ano do centenário do Flamengo o Kleber Leite assumiu a presidência e tivemos pouquíssimos cabeças de bagres no time. Em compensação, ele montou um “balcão de negócios” lá: comprou e vendeu mais de 130 jogadores. Teve um que foi comprado de manhã e vendido à tarde (um tal de Kelli). Ele comprou o Romário, vendeu o Romário, depois recomprou...Comprou o Edmundo, vendeu o Edmundo...etc. etc. etc. Haja comissão...

Na volta para o Brasil, dentro do avião, decidimos que não íamos pagar o restante da grana que devíamos, pelo desaforo de ver uma porrada de gente, que não contribuía em nada para o Flamengo, viajando de graça, às custas do clube. A raiva ainda era maior porque os dirigentes estavam fazendo média com o dinheiro dos outros. Eu duvido que eles fossem tão benevolentes com grana do próprio bolso.

O Zé me falou:

- Negão, eu não vou pagar porra nenhuma. Tá todo mundo de graça e não vou bancar o otário da turma.

- Otário tu já é desde que nasceu. O diabo é que quem tá no fogo é o meu "borrachudo", esqueceu?!

- Foda-se. Cancela o cheque. Quando eles te procurarem, nós vamos na Gávea e falamos um monte de merda. Esses caras precisam entender que o Flamengo não é a casa deles!

- Zé, essa porra não vai dar certo. Vê bem o que aconteceu em Milão...

Ele ficou irredutível. Disse que não ia pagar mesmo, e entrei na pilha. Cancelei o cheque. Cometi minha segunda grande besteira. O financeiro do Flamengo não quis saber, mandou o cheque para o pau. Para evitar o pior, mandei minhas advogadas lá negociarem o débito, que foi pago em quatro parcelas de 500 dólares cada.

Voltando ao Rio, uma coisa estava me irritando: Bebeto na reserva do time. Estava de saco cheio de ver o garoto arrebentar nas preliminares no Maracanã (nos juniores) e, só de vez em quando, sentar no banco de reserva do time principal. O técnico da época era o Cláudio Garcia. Comecei a reclamar e plantar na imprensa a insatisfação da galera com aquela situação. Soube, por terceiros, que a comissão técnica alegava que o Bebeto era muito jovem, inexperiente, fraco e outras babaquices. Como o time, bem ou mal, vinha ganhando, nós agüentávamos a coisa.

No domingo seguinte à volta da Colômbia, o Flamengo foi jogar em Porto Alegre, contra o Internacional. Eles tinham um timeco e nos deram um “chocolate”: 4x0, com direito a olé, botar na roda e o cacete. Aí, perdi as estribeiras. Depois do jogo fui para cima do Helal (Presidente do Flamengo).

- Presidente, que vergonha. O Flamengo não pode tomar de quatro de time nenhum do mundo, muito menos desse timeco do Inter, pô!

Ele sério, respondeu:

- Moraes, você tem toda a razão. Foi uma vergonha, e tanto a comissão técnica quanto os jogadores vão ter que me explicar isso direitinho.

- Helal, não entendo como o Bebeto está fora desse time. Não dá para entender como um dos melhores jogadores do Brasil não consegue vaga nessa equipe, que tem um montão de cabeças de bagre. Só um débil mental não vê isso, presidente.

- Calma Moraes - respondeu o Helal -, todos nós estamos nervosos com o resultado do jogo. Eu também sou flamenguista, tanto quanto você. Olha, como torcedor, e não como presidente, não posso interferir no trabalho da comissão técnica, também já questionei isso. Acho que o Bebeto tem que jogar. Porém, a comissão técnica alega que o garoto é muito jovem, inexperiente e pode se queimar. E, além do mais, ele é muito franzino.

Fiquei revoltado e respondi:

- Porra! O Bebeto é campeão mundial de juniores. O pessoal da geração dele está toda jogando. Não dá para entender, presidente.

Por sorte, nesse momento, passaram Bebeto e mais dois reservas indo para um Fliperama, que ficava em frente ao hotel. Deixei eles passarem e fui atrás, juntamente com o Zé Carlos e o Bocão. Cheguei perto dele e falei:

- Bebeto, por que você não vem jogando como titular?

E ele, com aquela voz de baiano arretado, respondeu:

- O homem é quem escala o time, né? Por mim, jogo amanhã, mas ele não me bota para jogar, né?

- O Helal me disse que a comissão técnica alega que é você que não quer jogar, dizendo que não está preparado, que é franzino e outras frescuras...

Ele respondeu irritado:

- É mentira. Eu quero jogar. Se eles querem um cara forte, então que contratem um halterofilista fortão, né?

- Então, garoto, se prepara porque, a partir do próximo jogo, você vai entrar. Na marra, se necessário!

No jogo seguinte, contra o Brasil de Pelotas, o Bebeto começou jogando e nunca mais saiu do time...