Uma Faixa Estendida na Raça
UMA FAIXA ESTENDIDA NA RAÇA
A segunda fase da Libertadores foi contra o Jorge Wilsterman, em Cochabamba Bolívia. Eu, Cláudio (fundador e chefe da Raça Rubronegra) e seu irmão César, fizemos a maior loucura que um torcedor pode fazer pra assistir o jogo.
O Flamengo estava embalado e com chances reais de ser Campeão do Mundo. Tinha um timaço comandado pelo Zico e a galera estava super pilhada. Todo mundo querendo ir, mas o problema era grana. Aí resolvemos ir por terra, de ônibus, trem e o diabo que fosse. Assim que a noticia se espalhou pelo Maracanã, umas 100 cabeças toparam. À medida que se aproximava a data da viagem, todo mundo tirava o corpo fora. Era um tal de prova na faculdade, enterro da avó, mamãe não deixa...
Resumindo, do grupo que "topou" inicialmente, somente o Cláudio mantinha a palavra.
No domingo, no Maracanã, decidi confrontar a turma:
- Como é que é: quem vai afinal à porra do jogo?
O único a responder sem enrolar foi o Cláudio:
- Moraes, eu quero ir, mas tô duro. Vamos de ônibus né?
- É, vamos por terra. Quem topa?
Só ouvia isso:
- Vocês são malucos... Vão ser comidos pelos índios, se não morrerem antes de febre-amarela!
- Quem quiser ir tem que estar aqui quarta-feira à noite, já com mala, passaporte, comprovante de vacina contra febre-amarela e uns 200 dólares. Saímos daqui direto para o Mato Grosso.
Ficou tudo acertado. A princípio iam uns vinte. Após o jogo, o Cláudio me chamou num canto e disse:
- Moraes, procura organizar: horário dos ônibus, preço da passagem etc. porque eu não manjo nada e, ainda por cima, vou duro. Você me dá uma força se faltar grana?
- Claro chefia! Além disso, vai a maior galera! Um dá força para o outro.
Ele me olhou e disse:
- Não conta com esses caras não. Não vai ninguém, só eu e você, e talvez meu irmão, César, que trabalha no Banco do Brasil, em Teresina. Aliás, vou telefonar ainda hoje para ele. Tenho certeza que ele vai topar.
Segunda-feira cedo eu comecei a me movimentar. Primeiro pedi licença na Embrafilme, onde trabalhava. Já liberado da labuta, fui tomar vacina e procurar os amigos, donos de agência de viagem, para fazer o roteiro. Para minha sorte, meu chefe na época, Dr. Dario Correa, era de Mato Grosso e tinha vários parentes por lá. Ele me deu algumas dicas e colocou à nossa disposição uma casa de uns primos para dormir, em Campo Grande.
Na minha pressa de resolver tudo, cometi um pequeno erro, que quase põe tudo a perder. Esqueci do visto consular da Bolívia. Na terça-feira liguei para o Cláudio e disse que já tinha todo o esquema montado. Nós sairíamos direto do Maracanã, após o jogo contra o Olaria, para São Paulo.
Ele ponderou:
- Ué, não tem ônibus direto para Campo Grande (Mato Grosso)?
- Tem chefia, mas sai às 17h aí perdemos o jogo contra o Olaria. Não dá.
- Ok. Então saímos depois do jogo. Olha, meu irmão chegou hoje cedo e vai com a gente.
- Ele tem passaporte?
- Tem e já tomou a vacina, lá mesmo no Piauí. Tá tudo no esquema. Vamos levar comida?
- Só biscoitos. Eu não nasci para ser farofeiro, arrombado!
- Tá bom...A gente se encontra no Maracanã, no jogo, e depois vamos embora. E completou: agora vou me despedir da minha mulher...
- Qual delas?
Minha pergunta tinha razão de ser: há dois anos que eu conhecia o Cláudio e já tinha ido a 16 casamentos dele. DEZESSEIS. E todos com direito à festinha, presentes...Que filho da puta.
Quarta-feira à noite, no Maracanã: ganhamos do Olaria e conheci o César, irmão do Cláudio. Bobão, mas gente fina. Na sala da Raça (dentro do estádio), um monte de gente nos olhava, morrendo de inveja. Ninguém, no entanto, se aventurara a ir.
O Cláudio tinha ido à Gávea e conseguiu uma carta do Flamengo às autoridades do Brasil (Polícia Federal) e da Bolívia, comunicando nossa viagem. Isso nos tranqüilizou, pois, pelo menos, enterrados como indigentes não seríamos.
Assim que terminou o jogo contra o Olaria, o Alan (um componente da Raça) nos deu uma carona até à rodoviária Novo Rio. Lá compramos as passagens a São Paulo para a meia-noite. Chegamos em Sampa por volta das seis da matina de quinta-feira e imediatamente compramos as passagens para Campo Grande. O ônibus saia às oito, o que deu tempo para uma média com pão e manteiga, e uma esticada de pernas.
Embarcamos para Campo Grande e, após cortarmos metade do Brasil, chegamos por volta de meia-noite. Nas paradas na estrada só o Cláudio almoçou. Eu e o César ficamos no biscoito, com medo de encarar a comida, que era horrível. Desnecessário dizer que chegamos em Campo Grande morrendo de fome.
Vamos para a casa dos amigos do Dario. Lá deve ter um rango esperto. Afinal, os caras estão nos esperando - isso era meu estômago falando. Pegamos um táxi e fomos para o endereço indicado, localizado em Ipanema, bairro de Campo Grande.
Eram quatro rapazes solteiros, jovens, que nos trataram muito bem. Realmente, tinha comida de boa qualidade. O único grilo era o “baseado”; os caras passaram a noite inteira fumando maconha. Nenhum de nós fumava nem cigarro; éramos caretas e estávamos lá, sentados diante dos quatro que revezavam um tremendo "charutão" (na nossa frente). E nós morrendo de medo da polícia pintar na casa. Ia levar todo mundo em cana, principalmente os "cariocas", na certa acusados de traficantes.
Acordamos cedinho no dia seguinte (sexta-feira) e, após um suculento café da manhã na casa dos amigos, fomos para a rodoviária e embarcamos para Corumbá, pela Transpantaneira, rodovia que corta todo o pantanal mato-grossense. Foi uma viagem fantástica, dessas que só quem conhece sabe do que estou falando: nós, o motorista e mais duas pessoas. A viagem durou quase quinze horas, por causa da estrada esburacada. Vimos todos os animais que existem por lá: veados, jacarés, onças, pássaros de todos os tipos, capivaras, enfim, tudo aquilo que só é visto normalmente no Globo Repórter. Inimaginável.
Com umas cinco horas de viagem, o ônibus parou para deixar os outros dois passageiros. Era uma espécie de quitanda, que só vendia cachaça, fumo e uns troços pendurados. Em cima do balcão havia uma espécie de estufa toda suja e, dentro dela, uma coxinha de galinha...verde. Devia estar ali desde o nascimento de Jesus Cristo.
O Cláudio logo falou:
- Oba, uma coxinha de galinha. Eu tô morrendo de fome, vou comer...
Eu olhei para o César e nós dois começamos a rir.
O César falou:
- Tu tá maluco. Essa porra deve estar estragada: tá até verde!
- Com a fome que eu tô... E, virando-se para o quitandeiro, pediu...
- Per favore, mê dá essa coxinha!
Fingi que não entendi o que ele estava dizendo e retruquei:
- Ô arrombado, tu ainda tá no Brasil. Vai falar portunhol na puta que o pariu...
- É mesmo, pensei que já estávamos na Bolívia - ele respondeu rindo sem desgrudar os olhos daquela coisa nojenta.
Nisso, o quitandeiro abriu a estufa e tirou “aquilo”. Juro pela minha mãe que, quando ele abriu aquela porra, todas as moscas que estavam perto (e não eram poucas) caíram mortinhas. E o Cláudio, como se estivesse pronto para degustar o mais fino patê, ou queijo francês, abriu a boca com gosto e traçou a coxinha inteira. Revoltado, César desabafou:
- Ele é meu irmão, mas não tem estômago; tem bucho. É um animal... - e continuou xingando até esquecer.
Seguimos viagem e, no final da noite, começaram a aparecer os mosquitos. O menor deles pesava vinte quilos. Insuportável. A gente matava os mosquitos com um pedaço de pau. Devido à invasão fomos obrigados a fechar as janelas do ônibus e suportar o calor de 50 graus lá dentro. Um sufoco, mas que estava longe de acabar. Ainda tínhamos que atravessar um rio de balsa, e a voz de comando do motorista traçou o nosso destino:
- Hora da travessia. Todo mundo fora do ônibus.
Foi um deus-nos-acuda. Quase morri: com a fome e agora atacado pelos borrachudos gigantes. Até pensei em me agarrar num deles e pegar carona até Corumbá.
Finalmente chegamos a Corumbá, já tarde da noite. Fomos procurar um hotel para dormir, já que a maratona continuaria no dia seguinte. Encontramos um Otel (com O mesmo), que não passava de disfarce para um tremendo puteiro. Pegamos um quarto e dormimos os três em duas camas. Os irmãos Cláudio e César, em uma, e eu na outra. O diabo é que os lençóis estavam meio gosmentos, como se tivessem participado de uma orgia, algumas horas antes. Um cheiro insuportável envolvia o quarto todo. Não fosse a exaustão, não dormiria nunca num lugar desses. Mas àquela hora, fazer o quê...
Na manhã seguinte, lá pelas 8h30, acordamos e fomos tomar café, se é que se pode chamar aquilo de café: “uma coisa preta, com um pão dormido e manteiga... manteiga...?” Deixa pra lá...
Nosso roteiro era atravessar a fronteira do Brasil com a Bolívia e seguir para a cidade de Quijarro, já na Bolívia. De lá pegaríamos o “trem da morte” para Santa Cruz de La Sierra. Pegamos um táxi e fomos cedo para Quijarro, no objetivo de comprar as passagens do trem. Aí, São Judas Tadeu entrou em campo e começou a ajudar (e não era sem tempo...a exaustão já começava). Na fronteira do Brasil, os policiais federais viram três malucos vestidos com a camisa do Flamengo dentro de um táxi e vieram logo conferir os documentos. Avisamos que estávamos indo ao jogo do Flamengo em Cochabamba. Um deles perguntou:
- O visto de vocês está em dia, né?!
Deu um branco. Ficamos amarelos, verdes, desesperados. E o Cláudio, tentando se controlar:
- E agora? Nós esquecemos de tirar o visto. E hoje é sábado!
O policial compreendeu o drama e tentou dar um jeito:
- Olha, nós podemos até quebrar o galho aqui, mas se vocês forem pegos... estão fudidos - enquanto falava, ele chamou o supervisor, que disse:
- No Consulado da Bolívia, em Corumbá, costuma ficar alguém de plantão. Se estiver fechado, procura a Consulesa neste endereço e vê o que ela pode fazer - e nos deu o papel.
Enquanto o policial falava eu, de rabo de olho, olhei para os dois irmãos. O Cláudio estava babando de ódio e o César com os olhos vermelhos de raiva. Pensei: tô fudido... Se a gente não conseguir o visto, vou apanhar muuuuuito...
Aí veio o tiro de misericórdia. O Cláudio falou para os policiais, com aquela voz empastada de político do PT:
- Senhor policial. Eu sugiro que o senhor arranje mais dois pares de algemas. Sabe porquê? Fizemos todo esse sacrifício para ver o jogo do Flamengo. Estamos viajando há 4 dias sem parar e, por causa desse “macaco” (apontando pra mim), pode dar tudo errado. Eu vou logo avisando ao senhor! Se a gente não conseguir o visto, eu vou matar esse cara. Se quiser, pode me prender agora...
E o César, completando o detalhe: Nós vamos matá-lo devagarzinho... Ele tem que sofrer muito...Vamos corta-lo em pedaços e dá pros Jacarés...
Cláudio - Pros Jacarés não que Jacaré não come merda... Vamos dá pros porcos...
Os policiais não sabiam se riam ou ficavam preocupados. Me olharam com uma pena...
Agradecemos e voltamos no mesmo táxi (que ficou esperando). O que eu ouvi dentro do carro não posso escrever...“crianças não podem ler ...”. O mínimo de que me xingaram foi de veado. Afinal, era o encarregado de organizar a viagem. Pelo menos ficamos amigos do motorista de táxi, um boliviano residente no Brasil. No caminho de volta ele nos mostrou “sua casa”. Mais uma ajuda de São Judas Tadeu...
Chegamos no Consulado que, felizmente, estava aberto. Conseguimos os vistos e voltamos voando para Quijarro (sempre no mesmo táxi). Chegando à estação, tiramos as malas do carro e fomos comprar os bilhetes do trem. Só tinha de terceira classe, bem no meio do povão, das cabras, gatos, cachorros etc. Com as passagens compradas, fomos comer. Eu e César ficamos no biscoito (não agüentava mais ver biscoito). Já o Cláudio... Bem, o Cláudio encarou uma coisa que parecia macarrão com água. E olha que era a comida de melhor aparência por ali. Pior do que a comida, só a água. Esta ficava num latão, e era servida em conchas. Parecia mais uma sopa, de tão grossa e escura. Tentei comprar uma "Perrier", ou uma "Ëviam", mas estavam em falta... Nunca vi o inferno, e espero nunca vê-lo, mas aquele lugar não deveria ficar muito atrás.
Agora, é preciso falar do trem. Necessário até. O apelido do trem é TREM DA MORTE... Já viram né? Todo de madeira. Galera, alguém aí já andou no ramal de Saracuruna? Isso mesmo. O Trem central do Brasil x Saracuruna é melhor. Puta que pariu. Na primeira classe os bancos pra sentar eram de madeira com alguma coisa parecida com estofado. Na segunda classe, madeira pura, e na terceira...Bem, a terceira era a sucursal do inferno... Banco pra sentar... Artigo supérfluo...
Por volta do meio-dia, quando fomos embarcar, o César sentiu falta da sua bolsa de mão. Foi um tremendo rebu. Pensávamos que tivesse sido roubada, até que ele lembrou que talvez houvesse esquecido no táxi. Por sorte a casa do motorista não era longe. Ele correu e foi até lá, onde o dono almoçava tranqüilamente. Nem o próprio motorista tinha notado a bolsa esquecida. Quase na hora do embarque me aparece o César de volta, aliviado com a bolsa recuperada. Era a hora da minha vingança. Xinguei o desgraçado até cansar.
Descobrimos o nosso vagão no trem. A nossa era passagem de terceira. Ficamos em pé. No vagão devia haver umas cinco milhões de pessoas. O trem, de uma moleza irritante, parava em todas as estações, onde desciam 50 e subiam mil. Além do desconforto, em toda parada os soldados do exército revistavam todo mundo. Abriam as malas e, sem nenhuma cerimônia, jogavam as roupas no chão.
No domingo (ainda no trem), por volta das quatro da tarde, o César ligou seu rádio de pilha e conseguimos saber que o Flamengo tinha ganhado do Madureira por 3 a 0. Isso animou um pouco, porque a viagem já estava se tornando insuportável.
Chegamos a Santa Cruz de La Sierra no final da tarde de domingo, cinco dias depois de sair do Rio. E ainda não havíamos chegado ao destino final. Para nossa sorte (sempre São Judas Tadeu), encontramos na estação um senhor chamado Cabrita, um brasileiro que residia em Santa Cruz e que disse ter sido jogador de futebol em São Paulo.
Contamos ao Cabrita o nosso drama, ou melhor, nosso objetivo: chegar a Cochabamba segunda à noite, para esperar a delegação do Flamengo. Ele foi do caralho. Começou a procurar algum meio de transporte por terra, pois não havia vôos regulares. O diabo era que o ônibus que fazia Santa Cruz de La Sierra - Cochabamba só nos deixaria na cidade na terça-feira, dia do jogo, às quatro da tarde.
Até que ele disse:
- Só tem uma solução. Vocês pegarem uma carona. No posto federal da cidade ficam várias pessoas na mesma situação de vocês. A carona é paga - o preço é barato e amanhã de manhã vocês chegam lá.
Não tinha outro jeito. Ele nos levou até o tal posto. Não demorou muito apareceu um caminhão carregado de açúcar e banana, que ia para Cochabamba. Combinamos o preço (cerca de dois dólares por pessoa) e embarcamos na carroceria. A temperatura já era baixa, por volta dos dez graus positivos. Enquanto subíamos a Cordilheira dos Andes, a temperatura caía cada vez mais. Por volta da meia-noite devia estar na casa do zero grau.
Foi terrível. Nós só comíamos banana – pelo menos não era biscoito. E o frio era cada vez mais forte; nós cantávamos, gritávamos, pulávamos para aquecer o corpo. Pensei que ia morrer. Lá pelas cinco da madrugada o caminhão parou numa birosca para comermos alguma coisa. Aí aconteceu uma coisa incrível. Um menino, de aproximadamente dez anos, nos olhou e gritou!!!:
- Ustedes son brasileños, si? Son de Flamengo! El Zico! Adonde esta Zico?
O nosso moral, que estava lá embaixo, deu uma guinada de 1000 graus. Porra estávamos em cima da Cordilheira dos Andes, onde nem Cristo foi, num lugar ermo, quase inacessível. E aquela criança conhecia nosso clube e, principalmente, nosso “Deus” – Zico! A alegria voltou. Juntamos os restos de nossas forças para agüentar o rojão, até porque não tinha como voltar.
Chegamos a Cochabamba por volta das nove da manhã de segunda-feira. Foram seis dias de sufoco. Procuramos um bom hotel (com h), tomamos banho e dormimos numa cama confortável até o meio-dia. E aí, finalmente, fomos comer uma refeição decente.
Alimentados, fomos para o Aeroporto receber a delegação do Flamengo, que chegou às 19h. O time estava tão prestigiado que até a Consulesa do Brasil foi recebê-lo. Os dirigentes, jornalistas e jogadores ficaram abismados com a nossa coragem. O Domingo Bosco, supervisor do Flamengo e, na minha opinião, o grande responsável pelo sucesso do time, se colocou à nossa disposição para qualquer coisa de que precisássemos. O Cláudio perguntou se seria possível conseguir ingressos para a partida, o que prontamente foi prometido.
A gentileza do Bosco foi um tanto exagerada e ele nos deu ingressos para a Tribuna de Honra. O diabo é que, naquela época, toda a América do Sul era comandada por ditaduras militares, cujos líderes não eram famosos pela gentileza. Na Bolívia, então, toda semana morria um milico, morto por outro milico, que assumia o posto de "presidente". Para nosso azar, o ditador de plantão resolveu sair de La Paz e ir a Cochabamba assistir ao jogo, mesmo sabendo que alguém podia tomar sua cadeira na capital.
Nós não sabíamos deste detalhe e fomos para o estádio. Como estava frio, fomos cobertos de casacos. Quando chegamos fomos conduzidos às tribunas. De dois em dois minutos éramos revistados, primeiro pela Polícia Civil, depois a Federal, o Exército e, por fim, os capangas do ditador. Era um tal de abrir casaco, tirar casaco, sacudir casaco, um saco. O Cláudio, um cagão de marca maior, tremia dos pés à cabeça, repetindo a toda hora:
- Nós vamos morrer aqui. Já pensou, um golpe militar logo agora.
Demos um jeito e colocamos nossa faixa: RAÇA RUBRONEGRA – SEMPRE PRESENTE, ao lado da Tribuna Especial. Isso nos alegrou muito. Era um compromisso da torcida está em todos os lugares do mundo. Vendo a faixa estendida nos abraçamos e vimos como valeu a pena todo nosso sacrifício.
Até que o homem chegou. O General veio coberto de medalhas até o dedão do pé. O cara andava curvado de tanta condecoração. Nós ficamos ao lado dele, apavorados com a perspectiva de uma tentativa de assassinato que errasse o alvo. Não sobraria nenhum de nós. Um sufoco.
Antes do jogo no hotel da delegação do Flamengo soubemos que o time deles estava sem goleiro. O titular estava machucado e os dois reservas imediatos tiveram algum tipo de problema. Resultando, chamaram pra jogar um antigo goleiro que já estava aposentado. Quando vimos o cara deu vontade de rir. Devia ter 300 anos, careca e com uma barriga maior do que a do Ronaldo Fenômeno na Copa da Alemanha. O César falou:
- Com esse goleiro aí é só chutar que é saco.
Não deu outra. Metemos 2 x0 e o goleiro barrigudo tava doido pra tomar mais.
Após o jogo, tivemos a maior e melhor das surpresas (fora a vitória do Mengão, claro!). Através do Paulo Dantas e do Domingo Bosco, as Linhas Aéreas Bolivianas, que haviam levado a delegação do Flamengo, nos concederam, de cortesia, as três passagens de volta ao Brasil. Regressamos com o time. Já imaginou fazer o mesmo trajeto na volta? Era morte certa.
Mas aí outro problema. Galera, alguém aí já viajou na gloriosa Linhas Aéreas Bolivianas 25 anos atrás? Duvido!!!. Caraca, vale a pena descrever o avião: Gente, a aeronave era uma sucata da primeira guerra mundial. Tinha duas hélices, podem acreditar. Era o único avião do mundo que pra levantar vôo neguinho tinha que “empurrar”... juro... eu vi. O serviço de bordo... serviço? Nos ofereceram um sanduba de mortadela e um Q,refresco de uva... Eu tive a petulância de pedir um copo d,água e ouvi:
- ta com sede? Vai lá no final do avião e pega porra...Quer mole? Senta no colo do Papa...
Bem, Vi o Zico com um terço na mão rezando até chegar ao Rio...; O Junior tava abraçado a uma imagem de São Judas Tadeu e só largou em casa...; O Adílio completamente branco; o Andrade ficou orando de joelho em cima do banco até o final da viagem... Os outros jogadores??? Nem vou falar... Caramba, que sufoco...
Bem, depois de 9 horas e 2.300 minutos chegamos ao Rio são e salvos completamente pilhados para a grande final da Libertadores. Com a certeza de que seriamos campeões.
Nossa aventura foi fartamente noticiada em jornais e revistas do Brasil. O Globo da época publicou na primeira página: UMA FAIXA ESTENDIDA NA RAÇA. Inspirou, inclusive, ao escritor Carlos Eduardo Novaes escrever o livro "Uma Odisséia no Oriente".
Passada a epopéia boliviana, veio a grande final da Libertadores. No meio disso tudo, o Flamengo ainda comandava o Campeonato Carioca. Na semana que antecedeu a viagem para o Chile, o Flamengo viveu talvez o maior mês da sua história. Confiram:
08/11/1981: Flamengo 6 x 0 Botafogo - fechamos de vez o caixão da cachorrada, acabando com qualquer resquício de orgulho da parte deles. Agora, nem freguesia, nem goleada, nem nada...
10/11/1981: Flamengo 6 x 1 Americano - pelo menos o time de Campos fez um gol;
13/11/1981: Flamengo 2 x 1 Cobreloa - partíamos decididos rumo ao Campeonato Sul Americano;
15/11/1981: Flamengo 3 x 0 Fluminense - só não foi de seis porque um torcedor tricolor invadiu o campo e, de joelhos aos pés do Zico, implorou clemência;
20/11/1981: Flamengo 0 x 1 Cobreloa - perdemos quando podíamos, e nos salvamos de um massacre;
23/11/1981: Flamengo 2 x 0 Cobreloa - Campeão da Copa Libertadores das Américas;
26/11/1981: Flamengo 5 x 1 Volta Redonda - Campeão do terceiro turno do Campeonato Carioca. Vantagem de dois jogos na final;
28/11/1981: um acidente nas ilhas Cagarras, no Rio, mata o maior treinador do Brasil - Cláudio Coutinho;
29/11/1981: Flamengo 0 x 2 Vasco - tiramos o Vasco do coma;
02/12/1981: Flamengo 0 x 1 Vasco - debaixo de um toró, aos 45 do segundo tempo, tiramos o Vasco da UTI. Só batemos em gente do nosso tamanho;
06/12/1981: Flamengo 2 x 1 Vasco - Campeão Carioca de 1981;
13/12/1981: Flamengo 3 x 0 Liverpool - Campeão Mundial de Futebol de 1981.
Quando vejo jogador de futebol reclamando do calendário hoje em dia, leio esta lista e dou risada.