Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Zico em Udine

O ZICO EM UDINE

Em 1983 o Flamengo conquistou o Tricampeonato Brasileiro. Fizemos todos os jogos do campeonato e pudemos atestar a popularidade do Flamengo e da Raça. Onde o time jogasse, era festa na cidade e havia sempre gente querendo saber onde os "caras da Raça" estavam.

Numa dessas viagens, logo na primeira fase, fomos a Manaus, Belém e São Luiz. Em Belém, estávamos eu e Zé Carlos no saguão do hotel, fazendo hora, quando chega um grupo de rapazes dizendo-se fundadores da "Fla Fla de Belém". Eles iam estrear no jogo contra o Paissandú e queriam oferecer o apoio da torcida. Um deles, médico, falou:

- Tudo o que vocês precisarem a gente faz.

Não sei porquê, me deu um estalo e eu falei:

- Tá bom, vamos agitar um pouco Belém. Isso aqui tá meio morno. Vamos promover esse jogo.

O pessoal da "Fla Fla" era bem relacionado e começamos uma peregrinação pelas rádios e televisões. Viramos celebridades locais, dando entrevistas, desafiando o Paissandú a fazer gol no Flamengo e, mais do que tudo, convocando toda a torcida do Flamengo para ficar onde a faixa da Raça estivesse. Foram dois dias de promoção, que agitaram a cidade. O jogo, que já ia ser sucesso garantido, arrebentou.

No domingo não cabia nem uma pulga no estádio, que estava sendo inaugurado (inacabado) naquele dia. Deu até medo do troço desabar. Mas o mais bonito era ver que 80% do estádio eram Flamengo, e que todo mundo que entrava apontava logo para a faixa da Raça e vinha em nossa direção. São espetáculos como esse que recompensam o esforço.

Mas é claro que o fato marcante de 1983 foi a venda do Zico para a Udinese. Uma tragédia. Uma frustração enorme ver o Galo jogando com outra camisa (e, o pior, alvi-negra). Quando foi anunciada a venda, a galera queria quebrar a Gávea. Foi uma loucura conter o pessoal. Só mesmo a liderança do Cláudio, pois, se fosse hoje, não sobrava nem azulejo da sede nova.

O que mais irritava era a atitude de indiferença de certos setores do Clube. No meio da confusão em que a Gávea se transformara, um "benemérito" gritou:

- Esses merdas ficam reclamando da venda do Zico. Mas foram quatro milhões de dólares! O Flamengo precisa desse dinheiro e esses favelados não devem nem ter noção do que é isso.

O Zé, que morava num apartamento que valia isso, berrou também:

- Quatro milhões acabam em um mês, com a roubalheira aqui dentro. Isso não é dinheiro para um clube do tamanho do Flamengo. O Zico é muito mais importante do que essa merreca, seu merda. Meu apartamento vale isso e tu não tem dinheiro pra comprar...

Ele ficou tão abalado que cheguei a sugerir que fosse a um analista.

Mas divã de torcedor fanático é a arquibancada. O Flamengo foi convidado para fazer o jogo de apresentação do Zico em Udine, e depois para participar do Mundialito de Clubes Campeões Mundiais, que seria realizado em Milão (Itália), com a participação da Juventus, Milan, Internazionale e o Peñarol, do Uruguai. Essa era a nossa oportunidade para espantar a depressão.

Só que, para variar, estávamos duros. Não dava para guardar dinheiro. Era viagem em cima de viagem, no Brasil e no exterior. Mas também não dava para perder a estréia do Galo. Impossível perder esse jogo. Fizemos os planos, contamos o dinheiro, vendemos o que restava para vender, e conseguimos uns trocados. Para nossa sorte, dessa vez o dólar paralelo estava com um ágio de quase 100% sobre o oficial.

Pegamos trezentos dólares (verdinhas) na mão, fomos a uma casa de câmbio trocar por cruzeiros, no mercado paralelo. Quase dobramos nossa grana. Depois fomos ao Banco do Brasil para comprar US$500,00 no câmbio oficial, em nome do Zé Carlos. Como o gerente era “componente da Raça”, nos deu a grana em papel (cash). Voltamos à casa de câmbio: vendemos os US$500,00 no paralelo e repetimos a operação no Banco do Brasil, agora em meu nome. Êta país legal! Com apenas duas atravessadas de rua transformamos US$300 em US$1000. Depois vendemos os US$1000,00 no parelelo e já deu para a entrada nas passagens aéreas. Puxa daqui, arranja dali, conseguimos mais uns trocados (em dólar). Para engrossar o orçamento, levamos cinqüenta camisas do Flamengo, pensando em vender a no mínimo, cinqüenta dólares cada.

Compramos as passagens Rio-Madrid-Rio, planejando encarar o resto da viagem de trem. Sabia que, se a coisa apertasse, dava pra correr para Barcelona e rever os amigos do "Regencia Colon".

Chegamos em Udine na véspera do jogo e ficamos num hotelzinho perto da estação. Nesta altura do campeonato, o Zico já era o dono da cidade: o prefeito, gari, médico, deputado etc. Ficamos conhecidos na cidade como “amigos do novo jogador” E olha que ele nem tinha estreado ainda. Quando chegamos ao hotel vestidos com a camisa do Flamengo, a diária baixou para vinte dólares (apartamento duplo). Já deu uma aliviada, porque tínhamos gastado mais de cento e cinqüenta dólares com passagens e comida de Madri até Udine.

Por volta das dez da manhã fomos ao hotel do Flamengo, que ficava nos arredores da cidade. Lembro-me bem da cara de espanto do doutor Taranto (medico da delegação) quando nos viu:

- Até aqui Moraes?! Não acredito! Eu já devia estar acostumado...

O Zico também estava no hotel. Uma confusão dos diabos. A imprensa do mundo inteiro estava lá, sem entender como o maior jogador do mundo foi jogar no Madureira de lá. Coisas da vida...

A essa altura todo mundo já tava sabendo “da nossa fama”, tanto assim que os dirigentes da Udinese se colocaram à nossa disposição. Nós só pedimos as entradas para a partida e que pudéssemos ir ao gramado colocar nossas faixas. Digo nossas porque tínhamos duas, desta vez: a tradicional, da Raça, e uma feita com esparadrapo no hotel, com os dizeres "Buona fortuna, Zico". Na hora do jogo veio um carro nos levar e tivemos total liberdade para nos movimentar no estádio e colocar as faixas. Dentro do estádio fomos aplaudidos. Os caras deliravam... Já imaginou? Uma cidadezinha do tamanho de um ovo, recebendo o maior jogador do mundo, o que atraiu toda a imprensa do planeta? Alguém já havia ouvido falar de Udine???

Aproveitando o sucesso, abrimos logo a nossa "boutique". Do nosso estoque só levamos dez camisas, que foram vendidas em pouco tempo a setenta dólares cada. Se tivéssemos levado todas para o estádio, não sobraria uma. Mais uma vez deu vontade de matar o Zé. Foi ele que insistiu que, em Milão, o preço seria maior...

Levamos “um chocolate”. Eles fizeram 4 a 1 rapidinho e, se não fosse o Raul em dia inspirado, íamos tomar de dez. Triste mesmo foi ver o Zico jogar, ainda que só por quinze minutos, com aquela camisa preta e branca. O Zé estava arrasado, pronto para voltar para o psicanalista.

- Nunca pensei, Moraes, nunca pensei que fosse ver o Zico jogando contra. É de doer - choramingava ele.

No dia seguinte retornamos a Milão para ver o “Mundialito”. Nosso problema era grana e, nossa sorte, o Flamengo. Conhecemos um cara chamado William, brasileiro, goiano e flamenguista roxo, que morava em Milão e estudava medicina. Como era período de férias, ele conseguiu que ficássemos no dormitório da faculdade (que era católica) por sete dólares, por pessoa. Mais barato que isso impossível. O único inconveniente era o horário e a disciplina do local. Havia uma espécie de toque de despertar, às seis da matina, e outro de recolher, às dez da noite.

Conseguimos contornar a situação “subornando o administrador do prédio com uma camisa do Flamengo”. Assim, dormíamos o quanto quiséssemos e saíamos dos quartos quando a barra estava limpa. À noite era mais fácil. Os padres dormiam cedo e entrávamos pelos fundos, com a chave que o administrador nos emprestou.

Íamos ficar quase quinze dias em Milão, com pouca grana (pouquíssima). Passeávamos pela cidade e íamos sempre para o hotel da delegação, que ficava num condomínio imenso, uma verdadeira cidade dentro de Milão. Tanto que se chamava Milano Due (Milão 2). Era longe pra burro, pegávamos um metrô e um trem para chegar lá.

Dada a nossa precária situação financeira, pedimos (pela primeira vez na vida) para ir aos jogos e aos poucos treinos no ônibus da delegação. Fomos prontamente atendidos, até porque parecia que a viagem era de férias. Todos os jogadores que quiseram levaram as mulheres, noivas, namoradas e agregadas. Havia também uns trinta diretores com as respectivas esposas. Uma verdadeira festa (o dinheiro da venda do Zico estava sendo bem aplicado...). Resolvemos, então, ser "beirinhas vips" (se arrependimento matasse...).

A Ana, mulher do Raul (goleiro), desconfiou que estávamos numa pior e, com instinto de “super-mãe”, todo dia, no café da manhã dos jogadores, preparava um verdadeiro farnel para nós: pão, biscoito, manteiga, geléia, queijo, frutas etc. Tudo devidamente surrupiado e entregue numa sacola. Aquilo era o nosso café, almoço, jantar e ceia. Manjar dos deuses para quem estava como a gente.

Na véspera da primeira partida recebemos um reforço de peso. Chegou de Londres, onde estudava inglês, o meu amigo Emanuel de Castro, o popular Danone. Por sinal, o Danone hoje é um grande produtor de filmes de surf, sendo bicampeão mundial dessa atividade e um “grandão” da TV Globo. Taí uma coisa que eu gostaria de entender: até à última vez que o vi, o Danone entendia tanto de surf como eu entendo de medicina nuclear, ou seja, nada. Se alguém quebrasse o quenco dele com uma prancha de surf, ele ia pensar que tinha sido atropelado por uma tábua de passar roupa... Por favor, meu irmão, me ensina o caminho das pedras!

Ficamos os três juntos até o final do torneio. No jogo contra o Milan vendemos as trinta camisas restantes. O menor preço foi de setenta dólares. Dependendo da cara do freguês, custava cem.

Decidimos o título com o Juventus e, além de jogarmos mal, fomos escancaradamente roubados pelo Juiz. Perdemos de 2 a 1. Jogamos tão mal que o próprio Presidente do Flamengo, que estava com a esposa... Saiu antes do final do jogo, resmungando:

- Nunca vi tanto rebolado na minha vida...

Após a partida algo bem mais desagradável do que a derrota nos esperava – o problema começou no dia em que aceitamos a gentileza do Flamengo de nos ceder ingressos. Apesar do gesto simpático, nós continuávamos sendo torcedores e fomos às próprias custas ver o nosso time jogar. Não éramos profissionais de torcida. E, como torcedores pagantes, tínhamos todo o direito de xingar, pedir raça, enfim, agir como um torcedor normal quando vê uma jogada errada ou um gol perdido. Isto é normal em qualquer estádio do mundo. Eu, particularmente, já xinguei o Zico, o Leandro, o Júnior, o Carpegiani, craques que também erravam. Uma das madames que viajou de graça se sentiu ofendida ao ver (ouvir) o nome do maridinho em nossas bocas, e foi reclamar com o Carlos Alberto Torres, técnico da equipe, que nós estávamos ofendendo os jogadores, chamando-os de maricas (quem ainda usa "maricas"?), frouxos, mascarados etc. Coisa típica de perua...

Depois do jogo, todo mundo de cabeça quente, e nós no ônibus que levaria a delegação de volta para o hotel. O Carlos Alberto Torres chegou no meio do ônibus e começou um discurso enaltecendo a raça do time do Flamengo. Até aí, tudo ia bem, se bem que nenhum de nós entendia onde ele queria chegar. De repente, ele passou a berrar e de dedo em riste:

- Você e você: - apontando para nós dois - nenhum jogador do Flamengo é maricas, frouxo ou covarde. São homens que honram a camisa...

A gente, sem entender absolutamente nada, falou:

- Tu tá maluco. O que aconteceu?

Ele e um dirigente, transtornados, partiram para me dar porrada. Vocês já viram o tamanho do homem? 2,95m por 0,90m, isso sentado. Desci do ônibus batendo todos os recordes de corrida com obstáculos. Quem salvou a pátria foi o Márcio Guedes, na época comentarista da TV Globo, que nos botou num carro e nos levou para o nosso mosteiro.

Arrasados, pela derrota e, principalmente, pelo incidente, iniciamos na mesma noite a volta para o Brasil, via Barcelona e Madri. Estava preocupado com o estado emocional do Zé, que nem falava, nem comia. Paramos um dia em Barcelona para "conversar" com o pessoal da VARIG.

É que nossos bilhetes aéreos eram da gloriosa PLUNA (Las Primeras Lineas Uruguayas de Navegacion Aerea). Alguém aí já viajou de Pluna? Naquela época, a simpática companhia aérea cobrava um preço baratinho para a Europa, mas em compensação... Pra resumir: certa vez, em um vôo, pedi um copo d’água. Ouvi na lata: vai pegar, se quiser! E na hora da comida, o comissário perguntava, no “gritão” mesmo: quem quer comer, levante a mão. Quem levantasse tinha que ficar esperto porque eles jogavam a bandeja na tua direção. Se pegasse, comia... Se não pegasse, levava uma bandejada nos cornos... Meus Deus! Socorro!!!

Nossas passagens eram para 5 dias após. Não dava mais para passar cinco dias na Espanha, sem dinheiro. Detalhe: nossos bilhetes Pluna não eram endossáveis. Usando a deplorável figura do Zé Carlos como argumento, consegui dobrar o gerente da VARIG, em Barcelona, que literalmente rasgou os bilhetes daquela companhia e nos colocou em um vôo (Varig) para o dia seguinte. Partimos no trem noturno para Madri. De manhã, já na capital espanhola, fizemos a única coisa sensata a fazer. Fomos para o aeroporto às onze da manhã para aguardar o vôo que saía à meia-noite.

Do aeroporto de Madri ligamos para o Cláudio no Brasil, e relatamos o ocorrido. Ele imediatamente se movimentou e no dia seguinte o Jornal do Brasil deu meia página sobre o episódio. Quando chegamos ao Galeão, a galera nos esperava num ato de desagravo. Não demorou muito o Carlos Alberto foi demitido do Flamengo...Pouco tempo depois, o presidente renunciou...