Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Excursão do Flamengo à Europa

EXCURSÃO MALUCA DO FLAMENGO À EUROPA
O Conselheiro Trabalhador

A partir do final de 1986, viajar em caravanas de torcidas organizadas começou a ficar perigoso. Começaram a se infiltrar nos movimentos verdadeiros marginais, que aproveitavam as excursões para brigar e roubar. Eu continuava a ver os jogos, mas ia de avião, carro ou de ônibus de carreira, quando o jogo era em São Paulo ou Minas.

Para piorar, o Zé estava casado, cheio de amor (ou medo) pela mulher e achou de levá-la nas viagens. O problema é que isso duplicou os custos dele, que já estava duro, e os meus, porque não podia mais dividir o quarto de hotel. Os companheiros passaram a ser o Isaac, o Eduardo Balassiano e o Barbudo. O Flamengo tinha uma administração populista, que começou a dar "mole" para alguns "chefes de torcida"(sic...). Em jogos fora, dava ônibus, ingresso e até dinheiro. Ora, um cara que saía daqui a Porto Alegre para assistir a um jogo, ia duro, sabendo que tinha passagem e ingresso. Para comer no caminho, tinha que roubar. As pessoas de bem começaram a se afastar da torcida.

Como eu era radicalmente contra isso, comecei a ser visado por outras torcidas e pelos pilantras de plantão. Uma coisa que me desagradava muito era que, em alguns casos, eu era confundido com um profissional de torcida (como ocorreu no Iraque). Quem não me conhecia, pensava que o Flamengo me dava dinheiro. O próprio Zé Carlos garante já ter ouvido esse tipo de comentário sobre nós, em pleno Maracanã, e vindo de gente que o conhecia. Isso me deixava puto! Para ver Flamengo, Zico e a Seleção Brasileira jogarem eu gastei, aproximadamente, uns quatrocentos mil dólares. Comecei a desanimar...

As brigas entre torcidas do mesmo time ou de clubes contrários eram constantes. Em um jogo pelo Campeonato Brasileiro de 87, Flamengo e Atlético Paranaense, no Pinheirão – ainda inacabado. Quando é que os dirigentes vão entender que não se joga em estádio inacabado? Provavelmente no dia em que um filho deles levar uma pedrada na cabeça... –, ocorreu a maior pancadaria que eu já vi num estádio de futebol! A tal ponto que os jogadores, em determinado momento, pararam para assistir. Primeiro foi uma briga entre a torcida do Flamengo e a deles. A polícia, como sempre, sentou o cacete nos caras locais (é hábito). Depois, briga entre a própria torcida do Flamengo. Logo após, todo estádio estava brigando. E a polícia sentando o cacete... E voavam blocos de concreto para todos os lados.

- Zé, não dá mais. Vou parar... - falei.

Outra pancadaria histórica ocorreu num jogo contra o Santos, em São Paulo. Fomos de ônibus normal e, a galera, de caravana. A torcida do Santos foi esperá-los na estrada. O pau quebrou. Foi uma briga monumental, com tiro e o cacete. A Raça só conseguiu chegar no estádio na hora do jogo. Me lembro bem do Augusto, de Niterói, me procurando assim que chegou. Ele estava todo contente e começou a narrar a pancadaria. . No momento do clímax ele gritou:

- Moraes, os caras deram vários tiros, e dois pegaram no ônibus, legal!

Vejam só o nível a que chegou: o cara leva dois tiros e ainda fica contente! Se fosse um idiota qualquer, eu até entendia. Mas o Augusto tem pedigree. É de uma família de classe média alta, universitário na época. Depois desta, comecei de vez a me afastar da galera. Não tinha mais prazer de estar com eles.

Mas o coração rubro-negro falava mais alto e continuei a ver os jogos do Flamengo, levando a faixa da Raça onde fosse. Houve uma excursão maluca em que o Flamengo jogava na Espanha, depois na Itália, voltava à Espanha, de lá ia para um torneio na Holanda, e depois retornava novamente à Espanha. Coisa de débil mental. Fui com o Barbudo. Entra em avião, sai de avião, entra em hotel, sai de hotel, o diabo. A coisa era tão louca que montamos nossa base em Amsterdã. Na delegação havia mais dirigente que jogador, todos devidamente acompanhados. Era uma empáfia só. Os cartolas se acham mais importantes do que os jogadores. No fundo mesmo, eles pensam ser maiores do que o próprio clube. O único que trabalhava era o meu amigo Ferreira Duro, que dava um "duro" danado para não faltar nada para os bicões.

O Flamengo tinha um timaço, com Leandro, Edinho, Jorginho, Bebeto. No torneio da Holanda ganhamos os dois jogos, mas perdemos o título pelo saldo de gols. Depois fomos para a Itália, e tive a maior decepção da minha vida. Eu, que já tinha visto Flamengo x Milan; Flamengo x Juventus...Vi meu time jogar contra times de segunda e terceira categorias do futebol italiano. Equipes de garotos de colégio de padres. E sabem o valor da cota? Cinco mil dólares. Dinheiro que eu tinha no bolso! Para piorar, assisti a dois jogos na Espanha em que o Flamengo não ganhou nenhum centavo. Jogou em troca de casa e comida. Uma vergonha o que os dirigentes fizeram com meu clube.

Dá para imaginar, por exemplo, o Milan vir ao Brasil jogar contra o Barreira de Bacaxá, em troca de hospedagem, ou o Barcelona jogar em Três Rios, pela cota de cinco mil dólares?

Foi um dos momentos mais tristes da minha vida: vi o Flamengo jogar em cidadezinhas só para satisfazer o prazer de alguns cartolas, que queriam dar viagens de férias para as esposas. E o pior é que o prestígio do clube já estava lá embaixo. Digo isso por causa do preço da venda das camisas. Quando o time estava no auge, vendi camisas a setenta e até a cem dólares. Naquela excursão, o maior valor que consegui foi vinte e cinco dólares.

A raiva era maior do que o prazer de ver meu time jogar. Estava ali vendo o meu clube totalmente desprestigiado, até que veio o tiro de misericórdia. Em Padova, uma estação de águas na Itália, estávamos todos à beira da piscina, quando um cidadão me fez a seguinte pergunta:

- Então, você é o famoso Moraes?

Eu, seco e puto, respondi:

- Famoso, não. Apenas um torcedor. E o senhor, quem é?

- Meu nome é...Eu sou presidente do Conselho Fiscal do Flamengo – e, continuando:

- Posso lhe fazer uma pergunta indiscreta?

- Claro, desde que não seja sobre a minha mãe.

- Quem é que paga as suas viagens?

Eu contei até mil para não afogar o cara. Se tinha uma coisa que, realmente, me incomodava, era aquele tipo de questionamento. Mantive a calma e respondi, tranqüilo:

- Eu sempre pago as minhas viagens. Acho que o Flamengo não tem obrigação de pagar nada para ninguém. Nem para os cartolas. Quem quer ver o time jogar tem que meter a mão no bolso, o senhor não acha?

Ele me olhou sério, ficou vermelho como um camarão, e respondeu:

- Em parte, você tem razão. Mas, no meu caso, não. Eu vim aqui trabalhando...

Eu e o Barbudo começamos a rir na cara dele. Vejam bem: o cara vai para a Europa, levando a mulher, não gasta um puto, senta o rabo numa piscina o dia inteiro, e me diz que está trabalhando! Qual o trabalho que o presidente do Conselho Fiscal pode fazer nesse tipo de viagem? Que grande cara de pau! Aí, eu pergunto: com que isenção esse cidadão poderá julgar as contas da administração, quando ele aceita este tipo de "trabalho"?

O Barbudo, tentando controlar o riso, não perdeu a viagem e falou:

- Pôxa, quando chegar ao Rio, o senhor bem que poderia tirar umas férias...

Ele não gostou nada da brincadeira.