Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Final da Libertadores da América

FINAL DA COPA LIBERTADORES DA AMÉRICA


Quando ganhamos do Cobreloa, no Rio, começamos os preparativos para a segunda partida, em Santiago, Chile. Corremos atrás de patrocínio e batemos de frente no muro. Nada de patrocínio e o Cláudio enlouquecendo.

Ele alugou um ônibus e não conseguia fechar as contas porque todo mundo queria ir, mas, grana que é bom, necas. À véspera da viagem éramos 35, assim mesmo porque uma rádio ajudou comprando 5 passagens, que foram sorteadas entre as torcidas organizadas do Flamengo. O Cláudio teve que vender o carro às pressas, no dia da viagem, porque a empresa queria 50% de sinal e o restante na volta. Foi um sufoco. Nós fizemos uma vaquinha e completamos a quantia necessária. Ficou então combinado que a excursão sairia segunda feira, às duas da tarde, da porta do Maracanã.

Na hora da viagem o Cláudio só deixou embarcarem no ônibus os torcedores que, além de terem pagado a passagem, tinham o mínimo de dinheiro para se manter no Chile.embarcaram 28. Foi de cortar o coração... Gente flamenguista roxa, disposta a passar fome pra ver o Flamengo, mas o Cláudio tinha razão. Era uma viagem para outro país, com a ditadura louca do Pinochet, além de atritos entre Argentina e Chile, não dava para arriscar. No ônibus, além do Cláudio, estavam o Gustavo Villela, o José Carlos Nascimento - que veio a se tornar meu companheiro inseparável das viagens -, Tia Laura (da Charanga ), Beto - presidente da União da Ilha -, Loyola e outros de que não consigo lembrar o nome. Aliás, a presença do Beto fez do samba da Ilha o hino oficial da caravana.

É hoje o dia,
da alegria,
e a tristeza,
não pode pensar
em chegar...

Saímos ao som do samba, por volta das três da tarde, da porta do Maracanã, diretamente para Santiago do Chile! O plano era chegar quinta-feira, véspera do jogo, descansar e assistir à partida com conforto, sem corre-corre. Pedimos ao Domingo Bosco que comprasse os ingressos (pagamos!!!). Até Mendoza (Argentina) tudo correu bem. Viagem cansativa é claro, mas sem maiores problemas, a não ser um ou outro que tomava “todas” numa parada, outro que "esquecia" de pagar a conta etc. Mas o Cláudio controlava a situação. Além disso, sempre lembrávamos que era a partida final da Libertadores. Nosso Mengão seria, com certeza, Campeão das Américas. Não podia haver “frescura”.

De Mendoza pode-se ver toda a imponência da Cordilheira dos Andes. Começamos a subir e nosso ônibus não agüentou. No meio do caminho, pifou! Putz!!! Conserta daqui, mexe dali, fomos obrigados a voltar para a cidade (Mendoza). Isso atrasaria a viagem em um dia e nos obrigaria a sair correndo para Santiago em cima da hora.

No dia do jogo, bem cedo, embarcamos para Santiago. Eram umas 6 da manhã e a viagem dura 6 horas, o que deixava tempo para fazer alguma coisa. Subimos a cordilheira – a fronteira Argentina/Chile fica bem no alto e passamos para o lado chileno. O ônibus quebrou de novo, deixando-nos a mais de 3.000 metros de altura, horas antes do jogo. Para nossa sorte, vinha atrás um ônibus argentino, que ia para Santiago. Conversa vai, conversa vem, todo mundo pulou para dentro e fomos embora .

Já eram 18h30 quando, finalmente, chegamos a Santiago (o jogo era às 20h). Corremos para o hotel do Flamengo, mas a delegação já havia saído. Todavia, o Bosco tinha deixado um recado que os ingressos estavam na bilheteria do estádio, à nossa disposição. Fomos para o estádio, com uma fome de matar leão, e chegamos cinco minutos antes de começar o jogo. Nossos lugares eram bem no meio da galera da torcida deles. Era como se um grupo de torcedores do Vasco assistisse a um jogo no meio da Raça Rubro-Negra...

O Estádio Nacional pulava, cantava, tremia, e a gente... apanhava, apanhava, apanhava...Levamos porrada, cusparada, beliscão, puxão no cabelo ... (e olha que a polícia estava nos protegendo). A única coisa de que gostamos foi quando eles começaram a jogar laranjas, bananas, uvas. Era pegar, limpar e ... comer. Com a fome que estávamos! Melhor só se eles tivessem jogado filé, batata frita, arroz...

Perdemos o jogo, que foi uma verdadeira batalha campal. Porrada pura. Os jogadores do Flamengo saíram do gramado como se tivessem participado de uma guerra na Palestina. O Mário Souto (zagueiro do Cobreloa) jogou com uma pedra na mão. Quebrou as cabeças do Atílio e do Lico. Foi terrível. O pior de tudo é que agora tínhamos que sair dali direto para Montevidéu, campo neutro, onde seria realizada a partida decisiva... Por sorte, nosso ônibus estava consertado e aguardava a galera na porta do estádio.

Saímos do estádio escoltados pela polícia que, por vício, sentava o pau em qualquer chileno que chegasse perto. Entramos no ônibus e fomos para um restaurante fora de Santiago, comer alguma coisa e planejar a viagem para o Uruguai. No fundo, no fundo, não estava nos planos de ninguém esse alongamento da excursão. Ficou decidido que voltaríamos de ônibus até a fronteira entre Argentina e Uruguai. Ali, o ônibus voltaria para o Brasil, levando quem não podia ou não queria continuar a viagem. O resto cruzaria a fronteira e seguiria por conta própria para Montevidéu.

Depois do “rango”, partimos para o Uruguai. Havia muita tensão no ônibus, não só pela derrota, pelo cansaço, mas também porque alguns colegas teriam que desistir, por falta de dinheiro. Com a inesperada extensão da viagem, não dava para bancar ninguém que estivesse duro. Só quem tinha dinheiro ou poderia conseguir no Uruguai (pedindo ajuda à família, via Banco) continuaria. Na fronteira da Argentina/Uruguai muita gente desistiu. Foi uma choradeira só. Imagina! Os caras estavam há 6 dias no maior sufoco e na hora do filé... Nos despedimos dos que voltaram prometendo a vitória, a qualquer custo. Do grupo original só ficaram quinze. Atravessamos a fronteira de balsa até uma cidadezinha e, imediatamente, pegamos um ônibus para Montevidéu. O jogo era na segunda-feira à noite, e nós chegamos domingo, no final da tarde.

Procuramos um hotel para o grupo. Juntando aqui e ali deu pra pagar para todo mundo. À noite fomos ao hotel da delegação e o Bosco (sempre ele) nos deu ingressos para o jogo. Foi uma noite tensa, pelo cansaço e pela emoção da decisão. Ninguém admitia perder. Nós tínhamos mais time, mas os chilenos bateram tanto em Santiago que deu medo do Flamengo se intimidar.

E começaram a chegar vários flamenguistas que tinham vindo ver o jogo. Três aviões lotados. Muita gente de carro, principalmente da fronteira. A cidade começou a ficar “vermelho e preto”. A alegria retornou. Na segunda-feira, hora do jogo, devíamos ser aproximadamente uns 3.000.

Para relaxar um pouco, fomos dar uma de turista e conhecer Montevidéu. Evidentemente, nosso turismo não passava de bater perna pelo centro e comer uma "milaneza com papas fritas ". Eu e o Zé Carlos estávamos caminhando quando, de repente, vimos um garoto, de frente para uma parede, com as pernas meio abertas, cabeça baixa, com o “saddam hussein” pra fora, fazendo um xixisão. Era o Guilherme, de porre, mijando alegremente na rua de Montevidéu. Começamos a rir, mas por pouco tempo. Mijar na rua era proibido pelo general da ocasião e um policial já vinha na nossa direção, de cacetete em punho. Uma cena grotesca: o guarda correndo para pegar o Guilherme, e ele fugindo, ainda sem ter acabado de mijar e segurando “o saddam” na mão. Por sorte, nosso hotel era perto e conseguimos empurrar o mijão porta adentro. O guarda passou, fez cara de mau e foi embora.

No dia do jogo, à noite, fomos cedo para o estádio. Estava todo mundo tenso, estressado, cansado e duro. Nem a chegada de outro grupo de torcedores, em quatro aviões fretados, melhorou o nosso astral. Estávamos há uma semana sem dormir direito, com uma alimentação sofrível, e ainda tendo que esperar pela decisão.

Apesar de tudo, estávamos confiantes. Afinal, tínhamos o melhor time do planeta: o melhor jogador do mundo e, para mim, o melhor que já vi jogar (e olha que eu vi Pelé, Maradona, Platini, Sócrates, Rivelino, Tostão...); um goleiro que deveria ser titular da Seleção (Raul); Leandro e Júnior, os melhores laterais do mundo; uma zaga de nível de Seleção (Marinho e Mozer); e, do meio campo pra frente, era até covardia – Andrade, Adílio, Tita, Nunes e Lico. No banco, jogadores de categoria e nosso técnico Paulo Cesar Carpegiani que, como jogador, depois do Zico, não vi melhor no Brasil. Como técnico, era um discípulo de Coutinho. Por trás de todos esses craques, o homem que era presidente, supervisor, auxiliar técnico, massagista etc. ...Domingo Bosco. Como perder, irmão ? Impossível.

A torcida uruguaia era toda nossa. Havia também uns cinco mil argentinos flamenguistas. Para o lado do Chile, nem quinhentos gatos pingados. Começou o jogo e, com um minuto, o Andrade dividiu com um chileno e isolou a bola, que foi parar em Santiago. Eu olhei para o Zé Carlos, que estava do meu lado, e disse:

- Zé, o time tá mordido, vamos meter uns três neles.

E o Zé, que nunca foi muito católico, olhou para o alto, como se rezasse, e falou, com os olhos cheios de lágrima:

- Tomara, Moraes, tomara. Se a gente perde esta, vai ser duro de agüentar.
Volto a pé.

(No ano seguinte, quando perdemos para o Peñarol, em pleno Maracanã, o Zé só foi embora a uma da manhã, expulso pelo guarda que fechou o estádio. Andou até o Leblon! Se perdêssemos aquele jogo, era bem capaz dele querer sair andando até o Rio, sim.)

A razão da minha confiança era justamente a disposição do Andrade. Aprendi a ver nele o termômetro do Flamengo. Andrade era um jogador altamente técnico, acima da média. Se no começo do jogo ele entrasse rachando ou dando chutão para onde o nariz apontasse, aí o time todo jogava sério. É que as jogadas começavam com ele no meio campo. Se rebolasse, a coisa ia ficar ruim, se bem que era difícil rebolar, jogando com um cara "chato" como o Zico. Ele falava o tempo todo, transmitindo aquela gana de ganhar, que sempre teve. Às vezes dava cada esporro que dava pena. Uma vez, num treino de dois toques, acho que em Caracas, o Mozer estava no time do Galo e só queria fazer gracinha em campo: toquinho para o lado, toque de calcanhar etc. Numa dessas, ele quase entrega o ouro. Quando vejo, lá vem o Zico aos berros, exigindo raça e seriedade para ganhar... A pelada!

A pancadaria começou cedo e um chileno foi expulso. Metemos o primeiro (Zico), e o Andrade se excedeu e também foi expulso. Mas em nenhum momento tive medo de perder a partida. Pelo menos, até o juiz anular um gol nosso e começarmos a perder muitas oportunidades. Aí, comecei a me preocupar, até que o Zico fez aquele gol de falta, no finzinho do jogo. Detalhe: na hora do gol do Galo nossa galera, ao invés de gritar de felicidade, se abraçou e começou a chorar...O estádio Centenário todo pulando, gritando “é campeão!” e nós... sentados e... chorando...A galera sequer viu o soco do Anselmo no Mario Soto.

Depois do desabafo entramos na folia, comemorando o título nas ruas de Montevidéu, ao som do samba da Ilha.


É hoje o dia,
Da alegria,
e a tristeza,
não pode pensar em
chegar...

A galera emendou. Fizemos nossa festa na cidade, com buzinasso, grito, alegria, inimaginável! “OBRIGADO SÃO JUDAS TADEU. OBRIGADO MEU DEUS”. A gente não cabia de felicidade. Porra, o meu Mengão era Campeão das Américas. Os vascaínos, tricolores e botafoguenses deviam está morrendo de inveja, metendo o dedo na bunda e rasgando... Cantamos até às 4 da manhã. Aí, caiu a ficha! Tínhamos que voltar para o Rio, de “ônibus”, que saía para Porto Alegre via Chuí. De Porto Alegre, outro para o Rio. Seriam, aproximadamente, 60h. Somente a alegria nos dava força para agüentar a barra. Negozinho não agüentava mais segurar nem um tamborim. O cansaço era insuportável, mas tínhamos vencido a Libertadores, e agora era uma questão de honra ir a Tóquio, ver o Mundial. A América do Sul era nossa. Só faltava o Mundo!!!

Depois de 400 dias dentro de ônibus, finalmente chegamos a Porto Alegre, após uma viagem que parecia ter durado um mês. O pior é que, de ônibus, estávamos ainda a 24 horas do Rio. Nisso, o Zé Carlos me chamou num canto e disse:

- Moraes, não dá mais. Estou morto. Vamos para o Rio de avião?

Eu estava com o mesmo pensamento, mas como abandonar o barco? Como largar a galera? Pensei mais um pouco e chamei o Zé e o Cláudio.

- Zé, vamos juntar toda nossa grana com a da galera e ver quantas passagens de avião podemos comprar, topas?

- Claro, era isso que estava pensando!!!

Chamamos a galera e, conta daqui, junta dali, completa aqui, intera ali, deu para comprar todas as passagens de avião Porto Alegre/Rio. Não dava nem para acreditar que seria verdade. Que, dentro de 2h30, eu estaria em casa. Na praia...

Pegamos a grana e fomos ao balcão comprar as passagens; aí, ouvimos a voz da burocracia nacional:

- Lamento dizer, mas o vôo foi cancelado por falta de passageiros. Eu sou colorado, e quero ver vocês irem a pé para o Rio de Janeiro.

A princípio, pensávamos que era uma brincadeira, de muito mau-gosto, por sinal. Mas era sério: a VARIG tinha cancelado o vôo. Protestamos, esperneamos, ameaçamos brigar e nada. Enquanto isso, calado num canto, o Zé Carlos assistia a tudo. Num certo momento, ele se vira e vai em direção a uma cabine telefônica. Uns minutos depois ele volta, mais quieto ainda, e me diz:

- Moraes, sai de perto da confusão e vamos para perto do balcão da VARIG, ver
como o Brasil funciona
.

Sem entender nada, perguntei:

- O que você quer dizer com isso?

- Liguei para a minha avó, no Rio, e pedi uma mãozinha. Ela ainda conhece umas pessoas na VARIG e o sobrenome ainda vale alguma coisa (o avô do Zé era um general grandão, que chegou a ministro e disputou a Presidência da República com o Gal. Médice).

Não demorou muito o burocrata colorado, muito a contragosto, chamou o grupo:

- O voô foi reaberto, vocês podem comprar as passagens e embarcar - falou, cheio de gentilezas.

Que babaca. Nós saímos rindo da cara dele. Embarcamos e 3 horas depois eu estava no calçadão, contando a aventura pra galera.

No dia seguinte, já estávamos embarcando para Volta Redonda – decisão do terceiro turno do Campeonato Carioca. Continuamos a colecionar títulos e fomos Campeões Cariocas, batendo o Vasco em três partidas memoráveis. Antes, tivemos que testemunhar a morte do grande Capitão Cláudio Coutinho, o maior técnico que o Brasil já teve.