Ser Flamengo é ter alma de herói

"Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnico, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."

Entrevista para o Estudante de Jornalismo Rafael Brakarz

 

Francisco Moraes, o torcedor mais famoso da década mais vitoriosa do Flamengo.

1)      A história já é até manjada, mas nunca foi ouvida pela boca dos torcedores: dizem que os jogadores do Liverpool, no Mundial de 1981, achavam que ganhariam fácil do Flamengo. Você que estava no estádio sentiu, realmente, esse ar de superioridade dos ingleses em relação ao time rubro-negro? Chegou a desconfiar que o título não viria?

Moraes: Na realidade o que aconteceu foi o seguinte: os ingleses (aliás, os europeus) não estavam acostumados a ver um time de futebol fazer aquela corrente, que era característica dos times do Brasil e da Argentina. Nunca tinham visto os times se abraçarem, rezarem e lançarem palavras de ordem e incentivo.  Então eles começaram a rir, sem maldade.  Nós (Flamengo) é que estávamos pilhados e com complexo de inferioridade (apesar de que naquela época o Flamengo era considerado o melhor time do mundo), e  levamos pra maldade. Agora um detalhe: na véspera do jogo fomos a um Táxi free em Tokyo (toda a delegação, inclusive alguns jogadores) e os jogadores do Liverpool estavam lá. Tentaram bater papo, foram gentis e achavam que iam ganhar fácil.  Nunca mais vão esquecer aquela partida. Nunca. Com 20 minutos o jogo estava decidido. Nós da torcida que estávamos completamente estressados, nervosos e tensos, não acreditávamos naquilo. Aliás, nem teve jogo. Fizemos 3x0 e tocamos a bola. O título mais fácil da minha vida. Por isso digo sempre nas minhas entrevistas. A maior partida do Flamengo foi o segundo jogo contra o Cobreloa em Montevidéu.

2)      Pouco antes da final da Libertadores, contra o Cobreloa, o Flamengo enfrentou o Botafogo naquele jogo no qual devolveu o 6x0 de 1972. Não sei se você se lembra, mas todo clássico entre eles, a torcida do Botafogo pendurava uma faixa relembrando do tal jogo. Você esteve presente no 6x0 do Flamengo? Não vivi nessa época, mas a impressão que tenho era de uma rivalidade sadia, o que não vejo nos dias de hoje. Você acredita que essa rivalidade, baseada na brincadeira, não tenha mais espaço nos estádios, uma vez que basta as torcidas organizadas se encontrarem para a confusão acontecer?

Moraes: Rafael, vou te responder em duas etapas:  

a) aquela faixa era o maior "calo" da torcida do Flamengo. Da história do Flamengo. Mexia com a gente entendeu? Em todos os lugares, entrevistas, estádios, eles só falavam nos 6x0. Um ano antes tivemos a chance de devolver esse placar. Num jogo à noite metemos 4x0 neles e o time pisou no freio. Era pra meter 8x0. O Zico ficou muito puto. Claro que fui àquele jogo. O Botafogo era melhor que o nosso time, mas nunca imaginaríamos tomar de 6x0.  Eles chutaram 6 bolas a gol. Todas entraram. Caraca, uma das maiores frustrações da minha vida. Tive que ouvir durante anos e anos gozações. E pra piorar eles tinham mais vitórias que nós. Era insuportável. Mas num espaço de 40 dias vivemos a maior glória do Flamengo dos últimos tempos:

08/11/1981: Flamengo 6 x 0 Botafogo - fechamos de vez o caixão da cachorrada, acabando com qualquer resquício de orgulho da parte deles. Agora, nem freguesia, nem goleada, nem nada...

10/11/1981: Flamengo 6 x 1 Americano - pelo menos o time de Campos fez um gol;

13/11/1981: Flamengo 2 x 1 Cobreloa - partíamos decididos rumo ao Campeonato Sul Americano;

15/11/1981: Flamengo 3 x 0 Fluminense - só não foi de seis porque um torcedor tricolor invadiu o campo e, de joelhos aos pés do Zico, implorou clemência;

20/11/1981: Flamengo 0 x 1 Cobreloa - perdemos quando podíamos, e nos salvamos de um massacre;

23/11/1981: Flamengo 2 x 0 Cobreloa - Campeão da Copa Libertadores das Américas;

26/11/1981: Flamengo 5 x 1 Volta Redonda - Campeão do terceiro turno do Campeonato Carioca. Vantagem de dois jogos na final;

28/11/1981: um acidente nas ilhas Cagarras, no Rio, mata o maior treinador do Brasil - Cláudio Coutinho;

29/11/1981: Flamengo 0 x 2 Vasco - tiramos o Vasco do coma;

02/12/1981: Flamengo 0 x 1 Vasco - debaixo de um toró, aos 45 do segundo tempo, tiramos o Vasco da UTI. Só batemos em gente do nosso tamanho;

06/12/1981: Flamengo 2 x 1 Vasco - Campeão Carioca de 1981;

13/12/1981: Flamengo 3 x 0 Liverpool - Campeão Mundial de Futebol de 1981.

b) quanto às torcidas naquela época não havia essa imbecilidade de que o torcedor adversário é inimigo somente porque torce por outro time. Você sabia que as torcidas tinham "salas" no maracanã para guardar material (bandeiras, bateria, etc)? Então, num Flamengo e Botafogo no domingo a galera começava a preparar a festa na sexta-feira à noite. Reuniam-se na porta do Maracanã, bolavam os planos pra festa  e... Cerveja, muita cerveja. Só iam pra casa domingo depois do jogo. As duas torcidas faziam churrasco, bebiam, jogavam bola no anel. Na hora do jogo cada um por si. Era um congraçamento genial. E olha que era público de 130 mil pessoas. Hoje o torcedor adversário é inimigo. Hoje são bandidos organizados que querem é matar quem estar com a camisa do outro time. Mas ainda existe muita gente boa nas torcidas, pode apostar.

3)      Uma das passagens do meu trabalho é a venda do maior ídolo do clube, o Zico. Fiquei sabendo que após sua venda, a torcida invadiu a Gávea e conseguiu pressionar o presidente Dunshee de Abranches a renunciar. Comente esse fato, por favor.

Moraes: Se você lê meu site vai ver que digo lá. O Zico foi "vendido" durante a Copa de 82.  Era questão de tempo ele sair e deu-se no final do seu contrato. O Zico só não iria se o Flamengo cobrisse a proposta da Udinese, que era impossível naquela época.   Pois bem, quando concretizou a venda a torcida realmente invadiu a Gávea e queria quebrar tudo. O Cláudio, então Chefe da Raça Rubronegra com sua liderança não deixou. Houve alguns incidentes, mas sem grandes repercussões.  O Dunshee de Abrantes foi um covarde. Renunciou e quem renuncia é covarde. Houve uma pressão muito grande, com faixas em todos os jogos: "Fora Dunshee - Vá Pro Catania", e outras iguais. A galera pegou no pé dele mesmo. Todo mundo desesperado pela venda do nosso Ídolo e ele pousou pros fotógrafos com uma camisa do Flamengo "fingindo" que tava chorando. Aí negozinho ficou com ódio do cara. Fizemos uma coisa genial. Descobrimos onde os filhos dele estudavam. Aí pedíamos aos outros "garotos flamenguistas" que infernizassem a vida deles (sem violência física). Subornávamos os  garotos com  camisas da Raça e mandávamos falar:.. teu pai é ladrão... Vendeu o Zico e ficou com a grana... Os muleques ficavam malucos e choravam... Ligávamos pra casa dele... A vida dele virou um inferno. Aí ele não agüentou e renunciou.

4)      Hoje em dia é comum ouvir a expressão "o jogador é moderno". Zico era moderno para a sua época ou o time era moderno para a época?

Moraes: O futebol moderno começou em 72 com o Ájax da Holanda. Digo isso porque o Zico tava começando e o Flamengo era sempre convidado pra jogos na Europa. Começamos a ver aquela rotatividade dos times da Holanda (somente lá se fazia isso). Isso ajudou muito a carreira do Zico. Muito. Tenho certeza que se o Zagalo o tivesse levado pra Copa de 74 mesmo como reserva (alegou que era muito garoto) o Galo tinha arrebentado na Copa de 78. Isso também aconteceu com o Maradona. Não foi convocado pra Copa de 78 e em 82 foi uma água, sendo inclusive expulso no jogo contra o Brasil. Então o Zico pegava na bola e dava dois toques. Antevia a jogada. Por isso foi o maior jogador do mundo da sua época. Se o Zico tivesse ganhado uma Copa do Mundo estaria no mesmo nível de Pelé e Maradona.

5)      Falei agora pouco na venda do Zico. Logo após sua saída, o clube apostou no Bebeto. Li em seu site, que você defendia a estréia do Bebeto no profissional o quanto antes. Ele jogou, conquistou títulos importantes, fez bastantes gols, se tornou ídolo, mas saiu pela porta dos fundos. Como a torcida viu a traição do Bebeto? Quem a torcida vaiava mais: Tita ou Bebeto?

Moraes: Essa do Bebeto é hilária. Eu tinha um "emprego" na extinta EMBRAFILME e tínhamos filiais em todo Brasil. Meu gerente em Salvador me mandava toda semana um recorte de jornal do Bebeto (então juvenil) dizendo:  Chefe leva esse garoto pro Flamengo. Joga muita bola. Pois bem, tanto encheu o saco que um belo dia fomos jogar em Salvador e na preliminar o Bebeto jogou. Arrebentou. Então falei pro Helal (então Presidente). Leva esse moleque ok. Ele falou. "Já estamos de olho nele". Aí o Bebeto foi convocado pra uma dessas seleções não sei das quantas e depois voltou pro Flamengo. O Helal deu toda a força pro cara. Tudo. Ficou sendo "filho dele". Eu praticamente escalei o Bebeto no time principal do Flamengo e ele nos deu grandes alegrias. Por causa de dinheiro e de um mau  empresário ele nos deixou. Foi uma grande frustração e até hoje ele sente na pele a besteira que fez. A galera jamais o perdoou. Quanto ao Tita  ele sempre se sentiu inferiorizado no Flamengo por causa do Zico. Ele intimamente achava que jogava igual ao Galo. Quando saiu, também pela porta dos fundos achou que podia tripudiar o Flamengo. Se fudeu.

6)      Quem foi o maior rival do Flamengo na década? ( pode ser a nível nacional)

Moraes: Rafael, só tinha timaço. Só craque e não cabeça de bagre com nome e salário de craque. O time do Atlético Mineiro era metade da Seleção Brasileira. O Guarani de Careca, Zenon, Jorge Mendonça. O São Paulo. O Vasco do Roberto Dinamite. Não dá pra dizer o maior rival. O Flamengo era simplesmente imbatível. De 78 a 83 era o melhor time do mundo. Viajei com esse time por mais de 40 países. Por causa do Flamengo as portas se abriram na Europa pra jogadores daqui. Só lamento que com aquele time disputamos 5 libertadores e só ganhamos uma. Não dá pra entender.

7)      Essa é a que todo flamenguista gostaria de responder: escale o seu Flamengo da década de 1980

Moraes: Não mudaria nenhum jogador do time de 81 e olha que vi jogar com o Manto Sagrado:  Silva Batuta, Samarone, Dida e Pelé.